ESCRITORES DE CARNE E OSSO

Toda história tem um começo. A deste blog também.

Meu aluno Júlio Bomfim, que esteve no lançamento de Escrito nas estrelas (leia mais sobre o livro abaixo), fez um comentário, dias depois do evento, que achei fundamental. Ele disse: “Sabe, professora (ele sempre me chama de professora, quando me chama pelo nome eu até estranho...): o que a senhora fez, no caso de Escrito nas estrelas, foi algo importante e responsável...”

Fiquei curiosa. Eu em geral sou responsável! (pelo menos me considero assim...). Que teria eu feito de MAIS responsável?...
Ele continuou: “Geralmente, os que escrevem livros para outros, ou transformam em livro as ideias de outros, ficam escondidos, não podem aparecer. A senhora rasgou o véu do ghostwriter: colocou seu nome na capa do livro, deu autógrafos no lançamento – e isso é uma atitude não apenas pioneira, mas também inovadora, porque valoriza o trabalho daqueles que escrevem, que possuem o conhecimento e a técnica necessários para isso, mas quase nunca obtêm reconhecimento público, nem tampouco são valorizados pelo mercado editorial.”

O Júlio tem toda a razão. Não que eu tenha combinado, com o grupo de trabalho de Escrito nas estrelas e com nossa Editora, a Rocco, que meu nome apareceria como o da pessoa que tinha escrito o livro a partir do enorme conhecimento de Horácio Tackanoo por uma questão de vaidade, por querer ser revolucionária ou algo assim. Quem me conhece sabe que, em geral, fico mais escondida do que exposta – às vezes, mais do que deveria.

Mas havia uma espécie de “justiça” que eu considerava necessária nessa minha atitude. Em todos os meus anos de experiência na área de Letras, eu vi (e senti, na pele) todo o desconhecimento que a sociedade tem a respeito de um profissional sem o qual a própria sociedade entraria em colapso – o profissional da palavra. E, consequentemente, toda a desvalorização que esse profissional enfrenta em seu trabalho, as dificuldades em encontrar um lugar ao sol, os baixos salários, etc., etc. Sem uma BOA comunicação (adequada, bem-feita, clara, precisa e, por que não dizer, esteticamente trabalhada), a sociedade se sustenta?

Quando ousei assinar o texto de Escrito nas estrelas (e a palavra é essa mesma, ousei, com nome na capa e tudo mais), quis apenas “dar a César o que é de César”: que o leitor do livro pudesse dizer “que conhecimento maravilhoso, que sabedoria infindável, que riqueza de caminho!”, sabendo que tudo isso é do Horácio, e não meu – não sou astróloga, nem posso assumir como minha a trajetória pessoal instigante e a enorme experiência védica desse homem... Mas que, quando pensasse: “que texto bacana, que livro bem escrito, que linguagem acessível”, esse leitor soubesse que isso, sim, é meu, fruto da minha experiência, do meu trabalho e da minha paixão de vida pelos livros e pela linguagem.

Apesar da “aura” quase mística que cerca os autores de livros, escrever, como diria o grande Graciliano Ramos, “é 10% inspiração e 90% transpiração”... Há muitas pessoas pelo mundo com grandes e inovadoras ideias e com conhecimentos vastíssimos, mas que não saberiam como (bem) transformá-las num objeto organizado, adequado, legível, interessante, vendável e estético como é um livro. E não há nada de errado nisso! Não dá para ser bom em tudo!

Dando forma a esses pensamentos, nós, escritores, estamos contribuindo no sentido de torná-los, enfim, públicos – e da melhor maneira possível: com técnica, com profissionalismo, com paixão.

Isso é que é responsabilidade! (como diria o Júlio...). Responsabilidade de gente. De carne e osso.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

DAS COISAS MAIS PEQUENAS

Minha homenagem de hoje a tudo que é pequeno. Quieto. Quase imperceptível.

I

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.

(Hilda Hilst, Cantares do sem nome e de partidas)

quinta-feira, 7 de março de 2013

COMMEDIA I: PROMESSA DE "INFERNO"



Este post é uma promessa. Uma promessa de “Inferno”. Por enquanto. :)

No início deste ano, meu conhecido do Twitter Anderson Arndt (@anderarndt) lançou o desafio: quem toparia ler toda a Divina Comédia, de Dante Alighieri, até o final de 2013?
Topei, né, fazer o quê? Topamos: eu e o Samir Elian, do Meio de Cultura (@samir_elian). Nossos combinados são: ler 10 Cantos da obra de Dante por mês (são 100, no total); e postar nossas impressões logo depois, pra compartilhá-las com vocês.

Então. Cumprindo minha promessa. O poema de Dante é dividido em “Cantos”, não é isso? Pósmodernamente, póscézannemente, meu post é dividido em... “Impressões” :)

Primeira Impressão: As línguas

Não, não são aqueles “órgãos musculares recobertos de mucosa, situados na boca e na faringe, responsáveis pelo paladar e auxiliares na mastigação, e tb. na produção de sons” de que fala o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Pelo menos não diretamente. 
Isso porque, primeira informação relevante, estudei no Dante Alighieri, gente! Isso significa que, bem ou mal, arranho um pouco o italiano. Além disso, há os pórticos! Na minha escola (sim, tornou-se minha depois de brava conquista...), os portões são encimados por frases, em geral frases da Commedia. No que chamamos de Portão Principal, aquele bonito, que fica na Alameda Jaú, em frente ao Trianon (seria mesmo lá? será que lembro mal?), éramos recebidos pelo verso 

che solo amore e luce ha per confine
(que só amor e luz há no final, trad. livre)

do Paradiso XXVIII, 54. Ou virávamos as costas e ganhávamos a rua, sabendo que o Paraíso ficava, então, para trás. Pelo menos eu pensava assim, naquele tempo.
Ou seria o Inferno?  Sobre o “portão do Ruy Barbosa”, o famigerado prédio do “ginásio”, a frase era outra. Dizia:

Lasciate ogne speranza voi ch’intrate
(Deixai toda esperança, vós que entrais, idem, Inferno III, 9)

Pois é. Talvez isso explique minha demora em começar a ler o livro, minha resistência em ler versões em e-book ou online, minha procura por uma versão... bilíngue! 
A edição que estou lendo é esta:




Segunda Impressão: Imagens


Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura,
ché la diritta via era smarrita.
[...]
Ed ecco, quasi al cominciar de l’erta
una lonza leggera e presta molto
che di pel macolato era coverta;
[...]
Questi parea che contra me venisse
con la test’alta e con rabbiosa fame,
sì che parea che l’aere ne tremesse.


Imagens. Selva, caminho, onça, pele malhada, ares que tremem. Um inferno em círculos descendentes e sucessivos.
Ler o poema de Dante é assistir a um desfile. Um teatro. Um desfiar de imagens com cores e formas violentas. Não há como não ver; como não imagi-nar.

Terceira Impressão: Memória

Lá pelo Canto III, depois da porta do Inferno, me deparei com Dante e Virgílio, seu guia e Mestre por Inferno e Purgatório, conversando. Dante se horroriza com os “habitantes” do limbo, os quais, segundo Virgílio, são aqueles cuja vida foi tão baixa que não têm nem “esperança de morte”. Então, lhe diz Virgílio:

‘Fama di loro il mondo esser non lassa;
misericordia e giustizia li sdegna:
non ragioniam di lor, ma guarda e passa.’

Na tradução (de Vasco Graça Moura), está assim:

‘Da fama não lhes fica ao mundo traça;
misericórdia justa os já despreza:
mas não falemos deles: olha e passa.’

Na minha memória, não era bem assim. Na minha memória, era “não preste atenção neles: olha e passa”. Na minha memória. Isso porque, tinha eu uns 15 ou 16 anos, me escondia na biblioteca da escola, lia, lia, lia, lia, lia, lia. Sem parar. Era meio... “diferente”? Meio quieta demais. A bibliotecária-chefe, minha muito, muito, muito, mas muito querida professora de História da Arte, italiana de Palermo, na Sicilia, com quem aprendi afrescos, perspectiva, baixos e altos relevos, todas essas coisas, uma senhora de uns 50 anos na época, sentada comigo numa das mesas da biblioteca vazia de gente, me dizia, então, justamente: “Minha figlia... Você tem que fazer como está na Commedia: 'Non ragionar di lor, ma guarda e passa...’. Nesse dia, ela não usou o ragioniam (1a pessoa do plural, prestemos), mas a 2a. Do singular: não preste atenção neles... Eu sofria muito, na época. Gostava de ler, de arte, de... saber? Não era assim uma adolescente muito normal... E haja bullying...
Nunca esqueci o conselho daqueles olhos azuis agudos, inteligentes, perscrutadores, irônicos, sabidos: “Non ragionar di lor, ma guarda e passa...” (quer dizer, às vezes esqueço, mas aí lembro logo. Ou procuro repetir...).

Quarta Impressão: “Os olhos que luziam mais que estrelas”...

A certa altura do Canto II, Virgílio explica a Dante por que, afinal de contas, tinha vindo em seu auxílio na viagem. Diz ele que, estando em algum ponto suspenso (Virgílio era romano, pagão, portanto não lhe era permitido entrar no Paraíso da Cristandade, apesar de suas inúmeras virtudes), encontrou uma mulher, que lhe pedira:

‘O anima cortese mantoana,
di cui la fama ancor nel mondo dura,
e durerà quanto ’l mondo lontana,
l’amico mio, e non de la ventura
ne la diserta piaggia è impedito
sí nel cammin, che vòlt’è per paura;
e temo che non sia già sí smarrito,
ch’io mi sia tardi al soccorso levata,
per quel ch’i’ ho di lui nel cielo udito.’ 

Na tradução:

‘Ó alma tão cortês e mantuana, [Virgílio era da região de Mantova]
de quem no mundo a fama inda perdura
e de durar quanto ele já se ufana,
o amigo meu, que o não é da ventura,
nessa praia deserta ei-lo impedido
e atrás volveu e o medo o desfigura;
e eu temo já se encontre tão perdido,
que tarde a socorrê-lo vá levada,
e por quanto cá no céu já tenho ouvido!’ 

Dante fraqueja, esmorece. Tem medo. Uma mulher desce do céu e por ele intercede.
Bela. Suave. De olhos mais brilhantes do que estrelas.
Essa mulher é Beatriz.



quinta-feira, 17 de maio de 2012

O ORTO-NAZI



Os fãs da extinta série de TV Seinfeld, como eu, com certeza se recordam de um dos seus episódios mais engraçados e famosos, o do “Soup Nazi”, ou “O nazista da sopa”. Nele, o dono de um pequeno negócio de venda de sopas “to-go” em Nova Iorque trata os fregueses como lixo e, se eles não se comportarem de acordo com seu protocolo imperturbável de serviço (respeito à fila, pedido rápido e sem conversa, postura rígida), são enviados para casa sem o produto: “NO SOUP FOR YOU!!!” era o bordão. 
E por que então as filas para a sopa do “Soup Nazi” eram de virar o quarteirão? Porque a tal sopa era simplesmente ótima! Deem uma olhada no trecho acima e morram de rir com as trapalhadas de Jerry e amigos...

Pois bem. O que eu vou contar agora lembra muito o “Soup Nazi”, mas não tem tanta graça assim. No sábado passado, em meio a uma crise de hérnia de disco cervical que já dura mais de mês e morrendo de dor, fui até o hospital (não vou dizer qual) com um prognóstico de internação. Só que, para ser atendida e internada pelo meu médico, precisava passar pela ortopedia do Pronto Atendimento, ainda que depois fosse ter o carinho e a atenção de quem já me cuida há tempo suficiente...
Ao saber disso, surtei. “Não vou pro PS de jeito nenhum, nem que a vaca tussa, nem que o mundo acabe, nem que eu morra seca”, pensei. Um medão danado. Mas não sem motivo: já estive no PS várias vezes no último ano (e não qualquer PS não), e o saldo foram vários diagnósticos errados, um monte de remédio na veia, muito pouco resultado e riscos, sabem? Só nesta crise de hérnia - odeio a palavra, parece xingamento! Talvez “compressão cervical” seja mais suave... Então: só nesta crise de hérnia, estive no mesmo PS uma vez, depois de 15 dias de enlouquecer, querendo bater a cabeça na parede, arrancar o braço fora e sem dormir, e o plantonista, com o Raio X na mão, me disse: isso é muscular, continue tomando antiinflamatório e relaxante que passa... Não passou.
Pois então: estava em casa, chorando de desespero, quando ele ligou. Meu médico. “Fabi, vai pro PS, eu te encontro lá. Eu vou te ver. Quando o plantonista te chamar, me liga”, ele disse. Chorando, respondi: “to com medo”. E ele: “Você ta chorando??? Meu - vai logo, não espera...”. Eu eu disse: “Ta bem.”
Cheguei no hospital, fiz a ficha, passei pela triagem, fui encaminhada à sala de espera da Ortopedia. Fiquei ali uns cinco ou dez minutos. Cheia de dor. Foi quando alguém no fim do corredor gritou meu nome. Mas gritou de um jeito, que eu tremi. Fui andando. Era um plantonista de verde, oriental, baixo e magro. “Doutor”, eu disse, meio brincando, “que voz forte!” Ele respondeu sério, me esticando a mão direita: “Bem-vinda ao mundo da dor”.
Pegou minha ficha: “Quadro de dor cervical há mais de um mês?” Fiz que sim. “Ta doendo muito?” Fiz que sim. “BEM VINDA!!!!” Ele quase gritou. “Você é apenas MAIS UMA das pessoas que passaram e que vão passar por mim hoje com a mesma queixa!!!!” Fui me encolhendo na cadeira. “Fez ressonância magnética?” “Sim.” “Qual foi o resultado?” “Compressão cervical com dores no braço e perda de força no braço e mão direitos.” “E o que você faz?” “Sou professora da USP.” “Usa muito computador?” “Direto.” “ESTÁ VENDO?????????? É ISSO!!!!!!!!!!!!!!!!! Enquanto você não largar esse COMPUTADOR, enquanto você não deixar de lado esse ESTILO DE VIDA LIXO que você leva, não vai melhorar dessa dor NUNCA!!!!!!!!!! Posso te dar o remédio que for, posso fazer o que fizer, vai ficar com essa dor PRA SEMPRE!!!!!!!!! TA ENTENDENDO????!!! VOCÊ TA VELHA!!!!!!! VELHA ANTES DA HORA, VELHA PRECOCE!!!!!!!!! VOU TE DAR MORFINA!!!!!!!! VOU TE PRESCREVER ANTIINFLAMATÓRIO!!!!!!!!!!! DOIS!!!!!!!!! PODE MANDAR ALGUÉM VIR BUSCAR O SEU CARRO, PORQUE VOCÊ NÃO VAI SAIR DIRIGINDO DAQUI HOJE!!!!!! TA ENTENDENDO?????? E MAIS: SE NÃO CUIDAR DESSA DOR, VAI FICAR LOUCA!!!! LOUCA, SABE COMO É??? NÃO VAI CONSEGUIR MAIS PENSAR!!! JÁ PENSOU, PROFESSORA, FICAR SEM PENSAR???? PORQUE DOR ENLOUQUECE!!!! ENLOUQUECE, TA OUVINDO??!!”
Com dor, encolhida na poltrona, levantei o dedo e o que eu disse foi: “Doutor, posso ligar pro meu médico? Ele está esperando...” “Pode ligar pro seu médico ou pra quem você quiser. Não vai adiantar NADA”, ele respondeu. Liguei, meu Doc disse: “To descendo.” Fez toc-toc, entrou na maior gentileza, pediu para ver as prescrições, arregalou os olhos, ligou pro especialista em coluna, com muita elegância disse que iam mudar as prescrições e que ia me internar.
Saímos de lá, eu dizendo: “Esse cara é louco!! LOUCO!!!” “Vem cá, Fabi”, ele disse. “Fica tranquila, você nunca mais vai ver esse médico na vida”.
Provavelmente, não. Espero mesmo que não. Mas, três dias internada, sendo tratada com mimo e o maior amor pela enfermagem daquele hospital de que tanto gosto, fiquei pensando: o problema não sou eu. Eu tenho a sorte de ter filtros (não acredito em tudo que escuto), e de ter o respaldo de gente em quem confio quase mais do que em mim mesma. Sabia que estava vivendo o absurdo, e que iria sair dali pra nunca mais, acompanhada de quem me interessa. Mas, e quem não tem a mesma sorte? E os pacientes anteriores? Os que se seguiriam? Como sairiam dali?

Esse médico - o Orto-Nazi, como vou chamá-lo daqui em diante - é um criminoso. Sopa não é nada. “NO HOPE FOR YOU!!!!!!!!” 

quinta-feira, 10 de maio de 2012

BREATHING. BLEEDING



VIII

“And I gave up forever to touch you”. Goo Goo Dolls falando às paredes da casa, escorrendo docemente das paredes, enquanto, docemente, a colher toca o chocolate líquido, resistente, contra as bordas da tigela. E os olhos sobre eles. Devagar, muito, muito, o que era sólido se derrete ao calor do forno, ao trabalho da mão. E a doçura. E a doçura. Delicadeza do toque que - quase - não se sente.

“I gave up forever to touch you”. 

Flashes do filme nos meus olhos, Meg Ryan na bicicleta, Yosemite, neve na montanha, água quente sobre o corpo no primeiro banho, perfumes de banho e de peras sobre a mesa, sabor de sangue, o caminhão, a bicicleta e o abismo. O abismo. “I gave up forever to touch you”.

Atirar-me contra o abismo daquilo que eu não sei. 
Queda vertiginosa passagem entre mundos. 

Meu anjo, você gente. 

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

ERAM LINDAS, ESTAVAM NUAS



Conhecem a citação abaixo, do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago? Conhecem o Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago?
(Depois da cegueira, do encarceramento, dos estupros, dos assassínios...)

"Só Deus nos vê, disse a mulher do primeiro cego, que, apesar dos desenganos e das contrariedades, mantém firme a crença de que Deus não é cego, ao que a mulher do médico respondeu, Nem mesmo ele, o céu está tapado, só eu posso ver-vos, Estou feia, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Estás magra e suja, feia nunca o serás, E eu, perguntou a mulher do primeiro cego, Suja e magra como ela, não tão bonita, mas mais do que eu, Tu és bonita, disse a rapariga dos óculos escuros, Como podes sabê-lo, se nunca me viste, Sonhei duas vezes contigo, Quando, A segunda foi esta noite, Estavas a sonhar com a casa porque te sentias segura e tranquila, é natural, depois de tudo por que passámos, no teu sonho eu era a casa, e como, para ver-me, precisavas de pôr-me uma cara, inventaste-a, Eu também te vejo bonita, e nunca sonhei contigo, disse a mulher do primeiro cego, O que só vem demonstrar que a cegueira é a providência dos feios, Tu não és feia, Não, de facto não o sou, mas a idade, Quantos anos tens, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Vou-me chegando aos cinquenta, Como a minha mãe, E ela, Ela, quê, Continua a ser bonita, Já foi mais, É o que acontece a todos nós, sempre fomos mais alguma vez, Tu nunca foste tanto, disse a mulher do primeiro cego. As palavras são assim, disfarçam muito, vão-se juntando umas com as outras, parece que não sabem aonde querem ir, e de repente, por causa de duas ou três, ou quatro que de repente saem, simples em si mesmas, um pronome pessoal, um advérbio, um verbo, um adjectivo, e aí temos a comoção a subir irresistível à superfície da pele e dos olhos, a estalar a compostura dos sentimentos, às vezes são os nervos que não podem aguentar mais, suportaram muito, suportaram tudo, era como se levassem uma armadura, diz-se A mulher do médico tem nervos de aço, e afinal a mulher do médico está desfeita em lágrimas por obra de um pronome pessoal, de um advérbio, de um verbo, de um adjectivo, meras categorias gramaticais, meros designativos, como o são igualmente as duas mulheres mais, as outras, pronomes indefinidos, também eles chorosos, que se abraçam à da oração completa, três graças nuas sob a chuva que cai."

(p. 266-267 da 1a ed.)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

"ABORTAMENTOS E CESARIANAS": UM COMENTÁRIO



Perguntei ao Karl por estes dias se seria possível postar um comentário no Ecce Medicus incluindo uma foto. Ainda não sabemos a resposta, mas meu comentário sobre esse post ("Abortamentos e cesarianas") parte de uma imagem... Além disso, hoje é o dia mais adequado pra falar do assunto - vocês já vão entender -,  então resolvi começar por aqui mesmo, depois a gente põe lá no EM, se der... :)

Então. A foto é esta:





É: a barriga é minha, e é meu filho nascendo. De cesariana. Disse que hoje talvez seja o melhor dia para falar dela porque hoje essa cesariana completa 4 anos. Melhor: meu filhote faz 4 anos hoje. Talvez seja a melhor coisa que eu tenha feito na vida, esse meu filho. Nada tão perfeito, nem tão querido :)

Na semana passada, quando vi o post no EM, tomei de cara um sustão com a foto de abertura. Parecia eu, parecia meu filho! Por uma fração de segundo pensei: "será?" Claro que não era, mas se o fotógrafo tivesse conseguido pegar o rostinho dele sem a mão do médico... podia ser.

E aí, lendo o post e tudo, tive um insight na sobreposição dessas imagens. São praticamente idênticas. Não as imagens. São idênticos os protocolos de nascimento que regem uma cesariana. Processos muito mais parecidos entre si do que o buraco negro de expectativas e acontecimentos de cada parto natural (hoje não se fala mais "parto normal", né?). Numa cesárea, o médico, que já tem "todos" os exames em  mãos, sabe quase "exatamente" tudo o que vai acontecer. Ou pelo menos tem bem mais controle sobre o processo. O risco de ansiedade médica diminui muito. Em alguns casos, o risco de ansiedade da mãe também. E talvez um esteja ligado ao outro. Não será?

Acho que a minha cesárea foi decidida muito por causa disso. Meu filho estava encaixadinho, desde o 7o mês. Mas era enorme, eu sou pequena. Me deixaram de repouso em casa - risco de parto prematuro, disseram... E, até a 39a semana, fazendo ultrassons semanalmente e até a cada dois dias no final, nada de ele se manifestar: sem contrações, sem dilatações, nada... Aí minha médica resolveu tirar - "se não nasce até a 39a semana, o risco aumenta muito", dizia ela. Eu fui - não ia arriscar meu filho. Se ela dizia haver risco, eu aceitava. (Eu tinha tido um aborto espontâneo um ano e pouco antes, daí o medão. Mais dela do que meu, até. Mas meu também.)

De fato, ao tirarem meu pequenino de lá, parece que havia duas voltas de um cordão enrolado no pescoço e uma cabecinha em retroflexão (será que era esse o termo? o queixo um pouco levantado, o topo da cabeça pra trás), e isso provavelmente justificou, para minha obstetra (que eu amo!), a intuição da cesariana. Se ela disse, como falei, aceitei e respeitei.

Só queria compartilhar com vocês um detalhe. Talvez me achem meio maluca, mas tudo bem. Durante muito tempo, talvez um ano e meio ou dois, eu chorava toda vez que pensava na cesárea. Correu tudo bem, foi ótimo, ele nasceu perfeito, eu fiquei bem depois, a cicatriz é discreta, etc., etc. Mas eu queria ter sentido a dor do parto! Juro! Queria afinal saber se essa tal dor do parto é mesmo a pior que existe, queria sentir na carne mesmo, afinal, o que é ser mulher numa das pouquíssimas coisas que só nós temos o privilégio de sentir!

Durante toda a gestação, trabalhei muito meu corpo e minha cabeça prum parto natural. Fiz yoga, engordei pouco, caminhei, comi bem, preparei os seios pra amamentação (amamentei 1 ano e 8 meses!) - bom, já deu pra ver o quanto eu quis muito meu filho, né? E, sabem?, minha mãe diz assim: "mulher grávida é um horrooooooooooorrrrr, gooooordaaaa demais, disfoooooooorme, horríveeeeeel".... Posso dizer? É nada.  Sim, claro, esse é o momento mais animal que temos. Mas que BOM sermos BEM animais de vez em quando, não é não??? E tem coisa mais instintiva, mas animal que parir filho? Ah, eu queria muito ter sentido a dor do parto. Sem protocolo nenhum, ou quase nenhum, apenas aqueles pra minha segurança e pra da minha cria... Só me conformei muito recentemente. :)

Mas também não sou radical pro outro lado não. Acho que segurança é segurança, médico é médico. Porque, sabem?, sabe Karl?, assim como existem os médicos cesaristas, que são capazes de tirar uma (uma?) criança da barriga de uma mãe para poderem ir tranquilos pra qualquer Congresso Nacional de Obstetrícia, e depois largam a criança numa UTI neonatal felizes da vida, tem também os fundamentalistas do politicamente correto que seria o chamado "parto humanizado". Pra estes, só se pode nascer sem anestesia, na banheira, etc. etc. E não importa muito o sofrimento da mãe e/ou da criança. Importa, sim, a - nesse caso, a fé na natureza, ou no poder quase demiúrgico dos que "trazem um ser à vida"(?). Mas, convenhamos, ela/eles pode(m) não ser tão sábia(os) todas as vezes. Eu pelo menos acho assim. Confesso que senti muito preconceito da parte dos defensores desse tipo de nascimento, simplesmente porque dizia confiar na minha médica, e que seria uma cesárea, se assim tivesse de ser. Fui grande admiradora da "medicina bicho-grilo" até ter meu filho.  Depois dele e da minha mãe doente, passei a admirar a Medicina.

É isso. Desculpem esse comentário tão pessoal. Mas o jeito que eu tinha de falar do assunto era falando de mim...





sábado, 26 de novembro de 2011

MATOU OU NÃO MATOU? (OU "QUEM MATOU JOSÉ SARAMAGO?")






Na última semana, meio atabalhoadamente, finalmente assisti ao documentário José e Pilar (2010), dirigido por Miguel Gonçalves Mendes e co-produzido pela O2 de Fernando Meirelles.
Há tempos ando atrás dele. Do filme. Aliás, quem me conhece sabe que eu vivo atrás deles, e eles me fogem, ó pá... Perdi a projeção comercial em São Paulo - ir ao cinema hoje em dia me tem sido cada vez mais difícil -, então pedi a uma amiga que mora em Lisboa que o comprasse em DVD e enviasse pra mim por alguém. "Fabi!", ela me disse, "o Miguel vai a São Paulo em novembro, pode te levar o DVD e ainda fazer uma palestra para os seus alunos sobre o filme, o que você acha?" O que eu acho??? Maravilhoso, né? (viram como às vezes vale mesmo a pena esperar que as coisas venham a nós, em vez de ir até elas?... :) )
Pois é. Mas o Miguel não pôde vir... Ainda. E, justamente no dia em que recebo essa notícia, abro o site da Livraria Cultura e lá está ele: o DVD José e Pilar! Lançado no Brasil! Claro que comprei no mesmo minuto...
Já tinha escutado tanta coisa a respeito desse filme. 
"Longo demais."
"Saí chorando do cinema."
"Mostra o cotidiano do escritor."
Mas o que mais me chamava a atenção eram as observações sobre Pilar del Río, a mulher de Saramago:
"Fabiana, a Pilar matou o Saramago de trabalhar..."
"Ela muito vaidosa, muito insinuante, querendo aparecer por conta dele"...
"O documentário mexe mesmo, Fabi. E olha que nem sou tão fã assim da Pilar..."
"Tudo bem, ela ajudou muito, mas essa coisa de fazer do Saramago um pop-star..."

E lá fui eu assistir ao filme, com a tal pergunta na cabeça: assassina ou não assassina, essa Pilar? Matou ou não matou?

Gente... Observação no. 1: o filme é lindo!... "Cruel e delicado", como diz o trailer... Imagens super trabalhadas, trilha sonora incrível. Lindo!
Observação no. 2: a certa altura, no lançamento de A viagem do elefante em São Paulo (acho que é deste livro), uma mulher brasileira chega bem perto da mesa em que Saramago está assinando os livros, abaixa-se ao pé do ouvido dele e sussurra: "Eu te amo"... Pois é. Essa podia ser eu! :)
Observação no. 3 (e agora tenho de tomar fôlego): não vou responder à pergunta fatal!!! :))  Não vou dizer se, na minha opinião, Pilar matou ou não matou Saramago de trabalhar!!! :)
Nada disso: vou deixar que vocês assistam ao filme e cheguem às próprias conclusões! Claro! :)
Só vou dizer uma coisinha: o filme é um documentário. Certo? Então, como expectadores de um documentário, vamos até ele buscando uma verdade. Fazemos um pacto de veracidade com o filme, ao assisti-lo. Quem está ali é o Saramago, certo? É a Pilar, certo?
Claro que não!!! É - apenas em parte...
E, nessa transformação de fato em representação, o que mais me chama a atenção, em nós, que a recebemos, é que a leitura que fazemos dela me parece sempre marcada por modelos de representação!
Vejam só: quem classifica o filme de "uma bela história de amor" não estaria vendo nele... uma história de amor?? Quem procura em Pilar, ou em quem quer que seja, um culpado para a morte (trágica, não?!?) do herói (Saramago) não estaria vendo nele... um thriller de mistério, buscando vilões? Ou uma tragédia clássica, com a morte final do protagonista sucumbido por suas próprias escolhas?

Não vou responder aqui ao "matou ou não matou", já disse... Mas... Olhem para o filme com olhos um pouco mais abertos. E talvez vocês consigam chegar a uma resposta só sua e, que, por repetida, talvez possa ser a de muitos. Contada de muitas maneiras. Porque tudo pode ser contado de outro modo.


PS - Miguel: teu trabalho se apossou de mim por vários dias e noites, me tirou o sono, me emocionou às lágrimas. Obrigada por isso.