ESCRITORES DE CARNE E OSSO

Toda história tem um começo. A deste blog também.

Meu aluno Júlio Bomfim, que esteve no lançamento de Escrito nas estrelas (leia mais sobre o livro abaixo), fez um comentário, dias depois do evento, que achei fundamental. Ele disse: “Sabe, professora (ele sempre me chama de professora, quando me chama pelo nome eu até estranho...): o que a senhora fez, no caso de Escrito nas estrelas, foi algo importante e responsável...”

Fiquei curiosa. Eu em geral sou responsável! (pelo menos me considero assim...). Que teria eu feito de MAIS responsável?...
Ele continuou: “Geralmente, os que escrevem livros para outros, ou transformam em livro as ideias de outros, ficam escondidos, não podem aparecer. A senhora rasgou o véu do ghostwriter: colocou seu nome na capa do livro, deu autógrafos no lançamento – e isso é uma atitude não apenas pioneira, mas também inovadora, porque valoriza o trabalho daqueles que escrevem, que possuem o conhecimento e a técnica necessários para isso, mas quase nunca obtêm reconhecimento público, nem tampouco são valorizados pelo mercado editorial.”

O Júlio tem toda a razão. Não que eu tenha combinado, com o grupo de trabalho de Escrito nas estrelas e com nossa Editora, a Rocco, que meu nome apareceria como o da pessoa que tinha escrito o livro a partir do enorme conhecimento de Horácio Tackanoo por uma questão de vaidade, por querer ser revolucionária ou algo assim. Quem me conhece sabe que, em geral, fico mais escondida do que exposta – às vezes, mais do que deveria.

Mas havia uma espécie de “justiça” que eu considerava necessária nessa minha atitude. Em todos os meus anos de experiência na área de Letras, eu vi (e senti, na pele) todo o desconhecimento que a sociedade tem a respeito de um profissional sem o qual a própria sociedade entraria em colapso – o profissional da palavra. E, consequentemente, toda a desvalorização que esse profissional enfrenta em seu trabalho, as dificuldades em encontrar um lugar ao sol, os baixos salários, etc., etc. Sem uma BOA comunicação (adequada, bem-feita, clara, precisa e, por que não dizer, esteticamente trabalhada), a sociedade se sustenta?

Quando ousei assinar o texto de Escrito nas estrelas (e a palavra é essa mesma, ousei, com nome na capa e tudo mais), quis apenas “dar a César o que é de César”: que o leitor do livro pudesse dizer “que conhecimento maravilhoso, que sabedoria infindável, que riqueza de caminho!”, sabendo que tudo isso é do Horácio, e não meu – não sou astróloga, nem posso assumir como minha a trajetória pessoal instigante e a enorme experiência védica desse homem... Mas que, quando pensasse: “que texto bacana, que livro bem escrito, que linguagem acessível”, esse leitor soubesse que isso, sim, é meu, fruto da minha experiência, do meu trabalho e da minha paixão de vida pelos livros e pela linguagem.

Apesar da “aura” quase mística que cerca os autores de livros, escrever, como diria o grande Graciliano Ramos, “é 10% inspiração e 90% transpiração”... Há muitas pessoas pelo mundo com grandes e inovadoras ideias e com conhecimentos vastíssimos, mas que não saberiam como (bem) transformá-las num objeto organizado, adequado, legível, interessante, vendável e estético como é um livro. E não há nada de errado nisso! Não dá para ser bom em tudo!

Dando forma a esses pensamentos, nós, escritores, estamos contribuindo no sentido de torná-los, enfim, públicos – e da melhor maneira possível: com técnica, com profissionalismo, com paixão.

Isso é que é responsabilidade! (como diria o Júlio...). Responsabilidade de gente. De carne e osso.

terça-feira, 27 de abril de 2010

CHICA CARELLI E SUAS "ÁFRICAS"





Ela era apenas um retrato na parede. Na casa de campo de meu tio: moça, traços delicados, cabelos longos. Francisca. A filha mais nova do Antônio, primo homônimo de meu pai, ambos Carelli. O pai de Francisca, pintor.

Nunca a tinha visto fora do retrato – e das histórias. Que tinha morado por alguns meses com a avó, D. Lourdes, quando criança. Contava o que – nove, dez anos? Que tinha ido à Bahia, fazer Faculdade, e de lá nunca mais voltara. Que tinha se rendido ao teatro. E depois, com o passar dos anos, que ajudara a criar o Bando de Teatro Olodum. Lázaro Ramos falando dela na televisão, ou ela falando dele, pois ele começara a carreira ali, no mesmo palco de Salvador, sob a tutela da mesma Francisca. Ou melhor: nessa altura, ela já era a Chica – Chiquinha Carelli, como ele a chamou.

No sábado, 17, a moça de cabelos longos passou por mim como um pé de vento. Já não assim tão moça. Os cabelos curtos, meio grisalhos. Pequena mulher. Gestos amplos!... Passou, levantando poeira, casaco preto aberto, esvoaçante, e sumiu pela porta de vidro do SESC Vila Mariana rumo à rua. “É ela”, minha mãe disse, alvoroçada, “a Chiquinha!! Vamos lá falar com ela!”. “Eu não”, retruquei, toda tímida, “vamos esperar o resto da família chegar... Eles vão vir, com certeza!” E eles, é claro, vieram.

Costumo dizer que, onde tem um Carelli fazendo alguma coisa, os outros estão sempre lá, para prestigiar. Esse sempre foi o tipo de senso familiar admirável cultivado pela família de meu pai. Mas encontrar Chica Carelli nos bastidores do SESC naquela tarde de sábado, assistir ao trabalho de Chica naquele palco, foi muito mais que uma descoberta, digamos, “genealógica”.

Áfricas (2007) é uma das peças mais recentes do Bando de Teatro Olodum e a primeira dedicada “ao público infanto-juvenil”. Mas, como diz Lázaro Ramos – de novo ele – no vídeo indicado no link abaixo, é algo que os adultos também precisam ver. Porque, como está no programa da peça, ela “traz à cena o continente africano, através da sua história, seu povo, seus mitos e religiosidade, abordando o universo mítico africano em uma tentativa de suprir a escassez de referenciais africanos no imaginário infantil, povoado de fábulas e personagens eurocêntricos”. O enredo é simples: à beira do porto, em Salvador, um grupo de adolescentes se reúne para contar “histórias” da África. Simples, mas riquíssimo: o resultado é simplesmente um ESPETÁCULO! Texto de Chica Carelli e do Bando de Teatro Olodum, a partir de leituras, seminário, discussões. Direção? Chica Carelli.

Em tempos de Lei 10.639/2003, isso não é pouco (e quem trabalha com África sabe bem do que estou falando...). O desconhecimento desse universo é gigantesco! e permeado de muito preconceito, de muito pressuposto, pretensão, pretexto, prejuízo, prevaricação, etc. etc. (me lembro do dia em que eu fazia uma conferência para 400 professores de todo o Brasil em Campinas, há dois anos, falando da obrigatoriedade de se falar em África instituída pela tal lei “supracitada” (rss): ninguém tinha ideia alguma de como conseguir os textos, de como aprender o que tinha de ser... ensinado!).

Mas Áfricas ainda é muito mais. A peça de Chica traz aos palcos uma perfeita mestiçagem de formas, em que histórias da mitologia africana são contadas com um sotaque muito brasileiro, uma brejeirice típica do lado de cá do Atlântico e uma malandragem... baiana, “nacional”. Os atores também encarnam isso: eles não fazem o tipo dos africanos (vou generalizar, mas vá lá: altos, esguios, um tom mais escuro de pele, um jeito mais formal de se portar, vestir e falar): são fortes, coloridos, produzidos, alegres – tipicamente... brasileiros! Áfricas é simplesmente macunaímico: uma rapsódia de lendas, formas e culturas, uma mistura de oralidades e escritas, apimentadas com um bom-humor próprio da brasilidade. É, pessoal: “a gente não vê isso todo dia”! :)

Ao mesmo tempo, a cenografia e a própria dramaturgia de Áfricas trazem à tona, sim, algo do continente africano, um pouco indefinível, mas que me remete a algumas das produções cinematográficas recentes da África de Língua Portuguesa. A marginalidade da infância em Na cidade vazia (2004), da cineasta angolana Maria João Ganga, mas sem sua tristeza. O colorido esfuziante e musical de Nha Fala (2002), do guineense Flora Gomes, mas sem sua ingenuidade política.

E, para mim que estudei tanto a oralidade, Áfricas traz dois achados que considero joias sem preço. O primeiro é uma espécie de piada, um chiste, mas com grande profundidade conceitual. Às tantas da peça, uma das personagens anuncia o griot, narrador tradicional africano, fazendo alarde: que as histórias dele são magníficas, maravilhosas, monumentais, mas que ele mente, mente muito, que já não se pode mais controlar suas mentiras, e que então, finalmente, maravilhosamente, incrivelmente, ele irá abrir a boca e FALARRRRRR!!.... O griot pula para a frente do palco, abre bem a boca e.... ELE É MUDO!!! E começa uma dança cheia de gestos, tentando contar o que quer contar, mas tudo o que tenta dizer tem de ser sempre interpretado... por seus ouvintes! Isso mostra o quanto a peça de Chica, apesar de reivindicar o espaço devido à cultura africana tradicional, não tem nada de inocente, pelo contrário: de um jeito cheio de alegria – porque rimos muito com esse griot mudo –, ela mostra que o retorno integral às tradições é impossível e que seu resgate só pode ser feito assim mesmo: pelas interpretações que fazemos delas. Em Áfricas, esse é o traço de contemporaneidade crítica: o risco que a peça desenha no presente.

O segundo achado tem a ver com a magia do teatro, que opera, ao recriar no palco a cena primordial da roda de histórias, uma viagem no tempo. Não vivemos mais a época dos griots. Mesmo nos países africanos de hoje, a arte de contar histórias oralmente sobrevive mais como ruína, incertos fragmentos de uma prática social que foi se perdendo com o impacto da colonização. Ela ainda respira em pequenos gestos cotidianos e no resgate literário dessa prática que empreendem escritores como Luandino Vieira e Mia Couto (aqui, falo apenas do que melhor conheço: a África de Língua Portuguesa). Pois é aí que entra Áfricas: a possibilidade da encenação teatral do contar histórias, com contadores, ouvintes e narrativas, míticas e mágicas, que falam do cerne da vida, materializa, no presente da encenação, o gesto tribal da fala de que trata Paul Zumthor. Somos jogados no meio da tribo. Não mais aquela, perdida na noite dos tempos – mas uma tribo moderna, mestiça, colorida: brasileira. Áfricas é, assim, também uma máquina do tempo: riscando o chão de práticas antigas, jogando-as no plano de uma atemporalidade crítica, atual, atuante. Com isso, a peça consegue o que parece impossível: ela nos presenteia com o coração da África, muito mais do que com suas histórias.

Já no final do espetáculo, uma das personagens conta que, estando os deuses do panteão Iorubá reunidos numa grande festa, Omolu permanecia calado e incógnito a um canto. Isso porque ele era considerado – e considerava-se – muito feio, cheio de feridas e digno de desprezo. Inconformada, Iansã convidou-o para dançar. Ela girou e girou, tão rápido que as vestes e as feridas de Omolu voaram pelos ares, transformando-se em pipoca. E ele se revelou um homem belíssimo. “Assim é com a cultura africana”, conclui a personagem. “Durante séculos considerada feia e desprezível, de repente vem a Arte e, como Iansã, varre essas feridas e as transforma... em PIPOCA!” Esse brado arrancou lágrimas da platéia e muitos minutos de aplausos em pé, revelando, em Áfricas, um tipo de ação política saudável e necessária que, de tão mal empregada, hoje está (infelizmente) fora de moda.

Só tenho, só temos a agradecer a Chica por essa beleza, por esse presente. A ela e ao seu “Bando”. E me desculpo muito, com ela e com os leitores, por ter demorado tanto em escrever este texto. Mas a emoção foi muita.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

ESTADOS UNIDOS, 2001.

AMICHAI SHELI*

Quando eu parti me disseram
Leve consigo seus braços e pernas
Seus olhos e ouvidos
Livros
Poemas
A foto envidraçada do sobrinho mais velho
E o canto do pardal pousado na varanda.

Quando eu parti me disseram
“Hasta la vista, baby!”
Vai-te embora
A vida é assim
Cuspa o gosto do amor da saliva escura
E atire aos passantes e às formigas
Os beijos entre os vidros embaçados
As cartas jogadas na gaveta
E os pedaços rasgados da roupa de festa
Esquecida num canto da lavanderia.

Quando eu parti
Cobriram-me o chão de flores e palavras
As flores secaram
E as palavras se sujaram
Da sola dos sapatos.

E então meu pai partiu
Minha mãe
Meus irmãos
E o cão de olhos tristes e gentis
Partiram
Irremediavelmente.

E então me reparti
Olhos braços pernas e palavras
Flores cartas beijos pássaros
Cobriram o céu como fogos de artifício
E o melhor ficou enterrado
No jardim.



* Em hebraico, "Meu Amichai". Escrevi este texto sob o impacto do meu contato com a obra do poeta israelense Yehuda Amichai (1924-2000), que escreveu peças de grande força e delicadeza, sobre realidades nem sempre amigáveis ou felizes.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

O "CORO DOS CONTENTES" (ou será que é só pela amizade?... (risossss))

Pessoal,

Tenho recebido várias manifestações maravilhosas sobre o blog por email!
Mas, não sei se por timidez ou por falta de intimidade com o meio eletrônico (eu também não tenho não, viu, apenas parece que tenho...), essas pessoas incríveis não têm postado seus comentários on-line...
Então, tomo a liberdade de publicar alguns: para mostrar a essas pessoas o quanto o que elas dizem tem valor, para mim e para todos!
E por favor, pessoal: postem comentários!! Nada de intimidação!!! Afinal, como diz o próprio título do blog: somos escritores, mas de CARNE E OSSO!! Não somos estrelas, nem mitos. Somos só gente. Gente que gosta de gente!
Muitos e muitos beijos!! Bom dia!! :)

Agora, um pouquinho de cada um (e percebam o quanto, ao dizer coisas a mim, essas pessoas estão somente fazendo um retrato delicado e preciso de si mesmas -- elas que são luminosas, competentes, super trabalhadoras, aventureiras, cheias de garra e iniciativa...):

Fabiana,
você realmente foi feita de luz, e isso deve ter registro nas estrelas; é preciso apenas saber ouvi-las e entendê-las.
Beijos,
Mara
Maria Zilda da Cunha, por email


Olá, Fabiana! Quanto tempo e quanta felicidade ler este seu e-mail e ser direcionada a uma leitura ainda mais feliz: a do seu blog!
O seu texto introdutório me fez ter mais respeito por mim mesma e pelo trabalho que tenho realizado.
Não sei se lhe disse, mas estou coordenando uma série de livros, todos sobre habitação popular. Uma série sobre a história das maiores favelas da cidade: Heliópolis, Paraisópolis, Nova Jaguaré, Jardim São Francisco, Jardim Olinda, Vila Nilo. Outro sobre cortiços na cidade. Em todos, a ideia é contar o processo de urbanização das favelas e o programa de requalificação dos cortiços, por meio do resgate da memória desses lugares e de seus moradores.
Tenho visto e ouvido coisas surpreendentes. Arquitetos, engenheiros e assistentes sociais têm me ajudado a escrever. Em geral, contam as partes técnicas e me ajudam com as informações. Eu, além da pesquisa, da escritura das partes históricas, das entrevistas com as pessoas, dou forma a todo o texto.
Esse trabalho com as palavras realmente é algo surpreendente, difícil e árduo. E como você disse é um trabalho de responsabilidade, profissionalismo e paixão.
A cada dia sou mais apaixonada pela oportunidade de comunicar histórias, projetos e vidas. Isso também me assusta e já rendeu boas conversas.
Quero lhe desejar felicidades! Dar-lhe parabéns e dizer que sua trajetória e coragem inspira as nossas.
O Júlio está correto!
Beijos,
Keila
Keila Prado Costa, por email


Ola, Fabiana:
Tudo bem?
Já visitei o Blog e gostei bastante. A apresentação é muito legal, dando às Letras o que é das Letras e à Fabiana, o que é da Fabiana: inteligência, beleza e garra.
Parabéns!
Abração,
Tania
Tania Macêdo, por email


Fabiana querida, acabo de abrir o seu blog. Que aventura essa, ter um blog e escrever sempre nele!!!!!Bacana, mas deve dar um trabalhão!!!!! Como eu ainda uso computador como máquina de escrever, acho o máximo a aventura, e prometo segui-la sempre que der, vou guardar o endereço com carinho. Chegou a primavera por aqui. Um grande beijo, Salete
Salete de Almeida Cara, por email


Parabéns pela iniciativa. Que seja um sucesso.
Bjs
Leda
Leda K. Gontow, por email

quarta-feira, 7 de abril de 2010

VÍDEO LOOOUCO...

Oi, gente!
Não sei se sou eu que ainda não sei mexer bem com o negócio, ou se a relação entre Blogger e You Tube é assim enlouquecida mesmo e precisa de uma boa análise (risossssss)... O fato é que a Barra de Vídeos do You Tube colocada no blog simplesmente se transforma!
Então, se você vir, lá no item "Helpdesk medieval", um monge debruçado sobre um livro -- este é o vídeo certo! Se vir carros, rappers, guitarristas, caveiras -- simplesmente espere um pouco, que  o monge volta...
Enquanto isso, aproveite para expressar uma opinião: o que é o livro digital para você? O voto está a um clique do seu mouse...
Beijos a todos!!!! Bom dia! :)

segunda-feira, 5 de abril de 2010

ELES EXISTEM, E ESTÃO ENTRE NÓS!

Na última semana de março, aconteceu em São Paulo, patrocinado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), pela Imprensa Oficial e pela Frankfurter Buchmesse, o 1º Congresso Internacional do Livro Digital, em concomitância com o 36º Encontro Nacional de Editores e Livreiros (veja mais sobre o Congresso em www.congressodolivrodigital.org.br). O evento teve como objetivo discutir um artigo ainda novo no mercado brasileiro e que causa medo, desconfiança e preconceito, por um lado, e fascínio, ansiedade e desejo, por outro. Você já assistiu à saga Guerra nas estrelas? Pois é: República ou Império? Mestre Yoda ou Darth Vader? “Que a Força esteja com você” ou “lado escuro da Força”?


Brincadeiras (quase) à parte, participar do Congresso do Livro Digital me fez sentir abduzida por um disco voador fazendo um tour sobre São Paulo. Ou seja: observando o conhecido a partir de perspectivas completamente novas. No último dia do encontro, sentados à mesma mesa de discussão e diante de um público de 600 pessoas, o diretor-presidente da gigante Ediouro olhou para o diretor-presidente da não menos gigante Livraria Saraiva e disparou: “- Que confusão, hein, colega?” “- Nem me fale...”, respondeu o outro.

Diante das cifras avassaladoras que vêm dos EUA (estima-se que, em 2010, haverá cerca de 10 milhões de leitores eletrônicos – e-readers – funcionando lá, contra os 3 milhões já em uso em 2009), a indústria do livro parece mostrar-se ainda bem conservadora e presa a modelos convencionais: o que tem acontecido, na maioria dos casos, é a transformação dos arquivos eletrônicos (em PDF) dos livros publicados em papel em livros digitais, para serem vendidos em sites e lidos numa profusão de modelos de leitores (em 2010, serão mais de 50 tipos!).

A partir disso, ufa!..., discute-se: pirataria, preço do livro digital (os $9,99 da Amazon? “Jamais!!”, protestam os livreiros), direitos autorais do futuro (licenciamento de uso?), plataformas (inclusivas ou não-inclusivas, mais ou menos seguras, mais ou menos universais), métodos de segurança (alguém ainda se lembra das máquinas Xerox e das “batidas” policiais em Universidades?), marketing na rede mundial de computadores, o papel dos sites de relacionamento na divulgação da produção digital, touch-screen ou e-ink, DRMs, e-pubs, DAISY, ONIX, I-Pad, Kindle, Nook... Que é isso, língua de Marte? Assim é, se lhe parece...

Na tarde do dia 31, Fredric M. Litto, coordenador científico da Escola do Futuro da USP, mostrou ao público um vídeo da televisão norueguesa veiculado no You Tube (de um programa “mais ou menos como o Casseta&Planeta”, disse ele) em que um monge medieval “pira” diante da novíssima tecnologia chamada livro e precisa de um helpdesk para conseguir ler alguma coisa (você pode assistir gratuitamente a esse vídeo nesta página ou diretamente no You Tube). E afirmou: “Estamos exatamente como esse monge diante do livro digital”...

Mesmo diante de tantas falas importantes e utilíssimas, para mim a melhor conferência do Congresso foi a de Jeff Gomez, CEO da Starlight Runner Entertainment. Curiosamente, a fala dele foi a que gerou mais... silêncio. Gomez discorreu sobre “O poder da narrativa transmídia”, enfatizando que o futuro do livro não é, e não deve ser, a transposição da obra impressa para o meio digital. E afirmou que o contador de histórias transmidiático concebe sua narrativa já em diversos meios. Em outras palavras, já se escreve transmidiaticamente (Gomez trabalhou em grandes projetos de Hollywood, como Avatar e Piratas do Caribe), e fazer isso é uma técnica, própria de uma cultura de convergência, em que o livro está ligado ao filme, que está ligado ao game, que está ligado ao Blogger, ao Twitter, ao Facebook, à televisão e a tudo o mais que se possa imaginar...

Saí do Congresso e fiquei pensando em meu amigo William Cereja, o autor de Português: linguagens e de tantas outras obras didáticas de enorme sucesso no mercado. Nos idos de 1984, quando Português: linguagens foi gestado (eu tive a honra de acompanhar esse processo e recebi a primeira versão de alguns capítulos do livro ainda datilografados!...), ele já foi pensado assim, não é?, como uma obra... transmidiática! De repente me dei conta de que Português: linguagens já era um hipertexto, muito antes de se disseminarem os PCs e a internet... E aqui fica minha singela homenagem ao William, um dos homens mais inteligentes e visionários que conheci (e, muitíssimo mais importante que tudo isso, uma pessoa profundamente sensível e humana).

Pois é, gente... Eles estão entre nós... E não são os E.T.s, não: são os ebooks! Estaremos preparados para a invasão?

sexta-feira, 2 de abril de 2010

UM ENCONTRO ESCRITO NAS ESTRELAS

No início de 2009, meu marido Roberto, que é professor de ioga e estuda a cultura indiana há pelo menos 15 anos, decidiu fazer um curso introdutório de Astrologia Védica com Horácio Tackanoo. Assistiu às aulas, estudou um pouco, fez seu mapa astral védico (e também o de nosso filho Ricardo), seguiu algumas indicações e, depois de um mês mais ou menos, chegou em casa com cara de interrogação.
“Acho que o Horácio, o astrólogo, tem conhecimento mais do que suficiente para escrever um livro”, começou dizendo. “Perguntei – mas ele não tem nada publicado!...” E completou: “O que você acha de propormos a ele escrever um livro?... Você acha que conseguiria escrever?”
Toda essa história tinha, claro, um começo. No ano anterior, em 2008, havíamos formado um grupo de três pessoas (eu, ele e nossa amiga Patrícia Carvalho, jornalista) para realizar a publicação de um livro de medicina ayurvédica que, por problemas diversos, acabou não acontecendo. Mas esse primeiro (e frustrado) projeto já tinha ganhado a atenção da Editora Rocco, que, ao perceber que ele não se realizaria, lançou o desafio: “Vamos realizar outros projetos juntos!” (o projeto era mesmo bom...).

Resolvemos, então, convidar Horácio para uma conversa. “Mas você tem certeza de que consegue escrever um livro sobre astrologia, Fa?” (meu marido é sempre preocupadíssimo – às vezes com razão...) “Veja bem, não é um assunto tão falado como medicina natural e saúde, envolve complicadas questões técnicas, é muito mais difícil traduzir tudo isso para o leitor comum sem que fique chato...”

A preocupação tinha, sim, fundamento. Afinal, meu trabalho nessa história seria justamente “traduzir” um conhecimento (por que não dizer, uma “tecnologia”) milenar e torná-lo um livro. Só quem escreve sabe exatamente o que isso quer dizer. Um livro é quase um ser vivo: tem de ter seu caráter, seu modo de existir, sua identidade.

Para responder ao Roberto, me lembrei de meu orientador, um outro Roberto (o Ventura): a gente pode escrever, e bem, o que quiser, desde que saiba para quem escreve e que foco deseja. E desde, claro, que possua a técnica e o talento necessários para isso... Minha resposta foi: “se quiserem, eu faço”.

Escrito nas estrelas nasceu assim, desde o título: como um livro dedicado a apresentar a Astrologia Védica ao leitor brasileiro. E também como a história de um caminho: a jornada de um homem comum – o próprio Horácio – em busca de si mesmo e de um sentido para a vida. Esse é o “DNA” do livro: seu caráter profundo.

Sem ser chato, de maneira nenhuma!... Quem lê Escrito nas estrelas consegue também dar boas risadas! E talvez encontre ali, de modo leve e simples, uma forma de encontro consigo e com os outros.

Na noite do lançamento do livro, na Livraria Cultura do Shopping Bourbon, em São Paulo, depois de termos, eu e Horácio, dado vários autógrafos e recebido muitos amigos, um dos convidados me chamou de lado e indagou: “Me conta como é que é isso, escrever um livro com as idéias de outra pessoa?... Porque eu já tinha ouvido falar de ghostwriter, mas nunca tinha visto o tal ghost aparecer!... Então nunca tinha tido a chance de perguntar...”

Como eu disse a ele, o segredo é... que não há segredo! É “apenas” trabalho... E cada livro “pede” uma maneira de ser tratado.

Em Escrito nas estrelas, trabalhei a partir de dois materiais básicos: as apostilas e textos de curso do Horácio (ele já deu inúmeros, portanto tinha bastante coisa esquematizada), alguns retrabalhados e completados por ele durante a elaboração do livro, e várias entrevistas com ele, feitas, na maioria das vezes, com a presença da Patrícia Carvalho, sempre atenta, sempre precisa, mesmo com o barrigão de vários meses de gestação da sua segunda filha Mariana... (a Patrícia sempre sabe fazer as perguntas certas, o que foi fundamental para obtermos as respostas de que precisávamos... Foi também a Patrícia que se encantou com a informação, contada oralmente pelo Horácio, de que os deuses hindus inventaram a Astrologia porque perceberam que seus cabelos estavam embranquecendo: “Que máximo!”, veio dizendo ela, “os deuses também envelhecem!...”).

E assim o livro foi feito. A oito mãos, num processo bonito de colaboração entre nós. Com algumas discussões no meio do caminho, claro – quatro cabeças pensam sem dúvida melhor do que uma, mas pensam também diferente...

Quando entregamos o projeto inicial à Editora Rocco, um dos comentários que escutamos foi: “Adoramos a ideia de vocês, mas não costumamos trabalhar com grupos. Sempre dá confusão, e o livro acaba não saindo...”. Eles acreditaram em nós, e Escrito nas estrelas está aí, para provar que sim – é possível.