ESCRITORES DE CARNE E OSSO

Toda história tem um começo. A deste blog também.

Meu aluno Júlio Bomfim, que esteve no lançamento de Escrito nas estrelas (leia mais sobre o livro abaixo), fez um comentário, dias depois do evento, que achei fundamental. Ele disse: “Sabe, professora (ele sempre me chama de professora, quando me chama pelo nome eu até estranho...): o que a senhora fez, no caso de Escrito nas estrelas, foi algo importante e responsável...”

Fiquei curiosa. Eu em geral sou responsável! (pelo menos me considero assim...). Que teria eu feito de MAIS responsável?...
Ele continuou: “Geralmente, os que escrevem livros para outros, ou transformam em livro as ideias de outros, ficam escondidos, não podem aparecer. A senhora rasgou o véu do ghostwriter: colocou seu nome na capa do livro, deu autógrafos no lançamento – e isso é uma atitude não apenas pioneira, mas também inovadora, porque valoriza o trabalho daqueles que escrevem, que possuem o conhecimento e a técnica necessários para isso, mas quase nunca obtêm reconhecimento público, nem tampouco são valorizados pelo mercado editorial.”

O Júlio tem toda a razão. Não que eu tenha combinado, com o grupo de trabalho de Escrito nas estrelas e com nossa Editora, a Rocco, que meu nome apareceria como o da pessoa que tinha escrito o livro a partir do enorme conhecimento de Horácio Tackanoo por uma questão de vaidade, por querer ser revolucionária ou algo assim. Quem me conhece sabe que, em geral, fico mais escondida do que exposta – às vezes, mais do que deveria.

Mas havia uma espécie de “justiça” que eu considerava necessária nessa minha atitude. Em todos os meus anos de experiência na área de Letras, eu vi (e senti, na pele) todo o desconhecimento que a sociedade tem a respeito de um profissional sem o qual a própria sociedade entraria em colapso – o profissional da palavra. E, consequentemente, toda a desvalorização que esse profissional enfrenta em seu trabalho, as dificuldades em encontrar um lugar ao sol, os baixos salários, etc., etc. Sem uma BOA comunicação (adequada, bem-feita, clara, precisa e, por que não dizer, esteticamente trabalhada), a sociedade se sustenta?

Quando ousei assinar o texto de Escrito nas estrelas (e a palavra é essa mesma, ousei, com nome na capa e tudo mais), quis apenas “dar a César o que é de César”: que o leitor do livro pudesse dizer “que conhecimento maravilhoso, que sabedoria infindável, que riqueza de caminho!”, sabendo que tudo isso é do Horácio, e não meu – não sou astróloga, nem posso assumir como minha a trajetória pessoal instigante e a enorme experiência védica desse homem... Mas que, quando pensasse: “que texto bacana, que livro bem escrito, que linguagem acessível”, esse leitor soubesse que isso, sim, é meu, fruto da minha experiência, do meu trabalho e da minha paixão de vida pelos livros e pela linguagem.

Apesar da “aura” quase mística que cerca os autores de livros, escrever, como diria o grande Graciliano Ramos, “é 10% inspiração e 90% transpiração”... Há muitas pessoas pelo mundo com grandes e inovadoras ideias e com conhecimentos vastíssimos, mas que não saberiam como (bem) transformá-las num objeto organizado, adequado, legível, interessante, vendável e estético como é um livro. E não há nada de errado nisso! Não dá para ser bom em tudo!

Dando forma a esses pensamentos, nós, escritores, estamos contribuindo no sentido de torná-los, enfim, públicos – e da melhor maneira possível: com técnica, com profissionalismo, com paixão.

Isso é que é responsabilidade! (como diria o Júlio...). Responsabilidade de gente. De carne e osso.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

"ABORTAMENTOS E CESARIANAS": UM COMENTÁRIO



Perguntei ao Karl por estes dias se seria possível postar um comentário no Ecce Medicus incluindo uma foto. Ainda não sabemos a resposta, mas meu comentário sobre esse post ("Abortamentos e cesarianas") parte de uma imagem... Além disso, hoje é o dia mais adequado pra falar do assunto - vocês já vão entender -,  então resolvi começar por aqui mesmo, depois a gente põe lá no EM, se der... :)

Então. A foto é esta:





É: a barriga é minha, e é meu filho nascendo. De cesariana. Disse que hoje talvez seja o melhor dia para falar dela porque hoje essa cesariana completa 4 anos. Melhor: meu filhote faz 4 anos hoje. Talvez seja a melhor coisa que eu tenha feito na vida, esse meu filho. Nada tão perfeito, nem tão querido :)

Na semana passada, quando vi o post no EM, tomei de cara um sustão com a foto de abertura. Parecia eu, parecia meu filho! Por uma fração de segundo pensei: "será?" Claro que não era, mas se o fotógrafo tivesse conseguido pegar o rostinho dele sem a mão do médico... podia ser.

E aí, lendo o post e tudo, tive um insight na sobreposição dessas imagens. São praticamente idênticas. Não as imagens. São idênticos os protocolos de nascimento que regem uma cesariana. Processos muito mais parecidos entre si do que o buraco negro de expectativas e acontecimentos de cada parto natural (hoje não se fala mais "parto normal", né?). Numa cesárea, o médico, que já tem "todos" os exames em  mãos, sabe quase "exatamente" tudo o que vai acontecer. Ou pelo menos tem bem mais controle sobre o processo. O risco de ansiedade médica diminui muito. Em alguns casos, o risco de ansiedade da mãe também. E talvez um esteja ligado ao outro. Não será?

Acho que a minha cesárea foi decidida muito por causa disso. Meu filho estava encaixadinho, desde o 7o mês. Mas era enorme, eu sou pequena. Me deixaram de repouso em casa - risco de parto prematuro, disseram... E, até a 39a semana, fazendo ultrassons semanalmente e até a cada dois dias no final, nada de ele se manifestar: sem contrações, sem dilatações, nada... Aí minha médica resolveu tirar - "se não nasce até a 39a semana, o risco aumenta muito", dizia ela. Eu fui - não ia arriscar meu filho. Se ela dizia haver risco, eu aceitava. (Eu tinha tido um aborto espontâneo um ano e pouco antes, daí o medão. Mais dela do que meu, até. Mas meu também.)

De fato, ao tirarem meu pequenino de lá, parece que havia duas voltas de um cordão enrolado no pescoço e uma cabecinha em retroflexão (será que era esse o termo? o queixo um pouco levantado, o topo da cabeça pra trás), e isso provavelmente justificou, para minha obstetra (que eu amo!), a intuição da cesariana. Se ela disse, como falei, aceitei e respeitei.

Só queria compartilhar com vocês um detalhe. Talvez me achem meio maluca, mas tudo bem. Durante muito tempo, talvez um ano e meio ou dois, eu chorava toda vez que pensava na cesárea. Correu tudo bem, foi ótimo, ele nasceu perfeito, eu fiquei bem depois, a cicatriz é discreta, etc., etc. Mas eu queria ter sentido a dor do parto! Juro! Queria afinal saber se essa tal dor do parto é mesmo a pior que existe, queria sentir na carne mesmo, afinal, o que é ser mulher numa das pouquíssimas coisas que só nós temos o privilégio de sentir!

Durante toda a gestação, trabalhei muito meu corpo e minha cabeça prum parto natural. Fiz yoga, engordei pouco, caminhei, comi bem, preparei os seios pra amamentação (amamentei 1 ano e 8 meses!) - bom, já deu pra ver o quanto eu quis muito meu filho, né? E, sabem?, minha mãe diz assim: "mulher grávida é um horrooooooooooorrrrr, gooooordaaaa demais, disfoooooooorme, horríveeeeeel".... Posso dizer? É nada.  Sim, claro, esse é o momento mais animal que temos. Mas que BOM sermos BEM animais de vez em quando, não é não??? E tem coisa mais instintiva, mas animal que parir filho? Ah, eu queria muito ter sentido a dor do parto. Sem protocolo nenhum, ou quase nenhum, apenas aqueles pra minha segurança e pra da minha cria... Só me conformei muito recentemente. :)

Mas também não sou radical pro outro lado não. Acho que segurança é segurança, médico é médico. Porque, sabem?, sabe Karl?, assim como existem os médicos cesaristas, que são capazes de tirar uma (uma?) criança da barriga de uma mãe para poderem ir tranquilos pra qualquer Congresso Nacional de Obstetrícia, e depois largam a criança numa UTI neonatal felizes da vida, tem também os fundamentalistas do politicamente correto que seria o chamado "parto humanizado". Pra estes, só se pode nascer sem anestesia, na banheira, etc. etc. E não importa muito o sofrimento da mãe e/ou da criança. Importa, sim, a - nesse caso, a fé na natureza, ou no poder quase demiúrgico dos que "trazem um ser à vida"(?). Mas, convenhamos, ela/eles pode(m) não ser tão sábia(os) todas as vezes. Eu pelo menos acho assim. Confesso que senti muito preconceito da parte dos defensores desse tipo de nascimento, simplesmente porque dizia confiar na minha médica, e que seria uma cesárea, se assim tivesse de ser. Fui grande admiradora da "medicina bicho-grilo" até ter meu filho.  Depois dele e da minha mãe doente, passei a admirar a Medicina.

É isso. Desculpem esse comentário tão pessoal. Mas o jeito que eu tinha de falar do assunto era falando de mim...





sábado, 26 de novembro de 2011

MATOU OU NÃO MATOU? (OU "QUEM MATOU JOSÉ SARAMAGO?")






Na última semana, meio atabalhoadamente, finalmente assisti ao documentário José e Pilar (2010), dirigido por Miguel Gonçalves Mendes e co-produzido pela O2 de Fernando Meirelles.
Há tempos ando atrás dele. Do filme. Aliás, quem me conhece sabe que eu vivo atrás deles, e eles me fogem, ó pá... Perdi a projeção comercial em São Paulo - ir ao cinema hoje em dia me tem sido cada vez mais difícil -, então pedi a uma amiga que mora em Lisboa que o comprasse em DVD e enviasse pra mim por alguém. "Fabi!", ela me disse, "o Miguel vai a São Paulo em novembro, pode te levar o DVD e ainda fazer uma palestra para os seus alunos sobre o filme, o que você acha?" O que eu acho??? Maravilhoso, né? (viram como às vezes vale mesmo a pena esperar que as coisas venham a nós, em vez de ir até elas?... :) )
Pois é. Mas o Miguel não pôde vir... Ainda. E, justamente no dia em que recebo essa notícia, abro o site da Livraria Cultura e lá está ele: o DVD José e Pilar! Lançado no Brasil! Claro que comprei no mesmo minuto...
Já tinha escutado tanta coisa a respeito desse filme. 
"Longo demais."
"Saí chorando do cinema."
"Mostra o cotidiano do escritor."
Mas o que mais me chamava a atenção eram as observações sobre Pilar del Río, a mulher de Saramago:
"Fabiana, a Pilar matou o Saramago de trabalhar..."
"Ela muito vaidosa, muito insinuante, querendo aparecer por conta dele"...
"O documentário mexe mesmo, Fabi. E olha que nem sou tão fã assim da Pilar..."
"Tudo bem, ela ajudou muito, mas essa coisa de fazer do Saramago um pop-star..."

E lá fui eu assistir ao filme, com a tal pergunta na cabeça: assassina ou não assassina, essa Pilar? Matou ou não matou?

Gente... Observação no. 1: o filme é lindo!... "Cruel e delicado", como diz o trailer... Imagens super trabalhadas, trilha sonora incrível. Lindo!
Observação no. 2: a certa altura, no lançamento de A viagem do elefante em São Paulo (acho que é deste livro), uma mulher brasileira chega bem perto da mesa em que Saramago está assinando os livros, abaixa-se ao pé do ouvido dele e sussurra: "Eu te amo"... Pois é. Essa podia ser eu! :)
Observação no. 3 (e agora tenho de tomar fôlego): não vou responder à pergunta fatal!!! :))  Não vou dizer se, na minha opinião, Pilar matou ou não matou Saramago de trabalhar!!! :)
Nada disso: vou deixar que vocês assistam ao filme e cheguem às próprias conclusões! Claro! :)
Só vou dizer uma coisinha: o filme é um documentário. Certo? Então, como expectadores de um documentário, vamos até ele buscando uma verdade. Fazemos um pacto de veracidade com o filme, ao assisti-lo. Quem está ali é o Saramago, certo? É a Pilar, certo?
Claro que não!!! É - apenas em parte...
E, nessa transformação de fato em representação, o que mais me chama a atenção, em nós, que a recebemos, é que a leitura que fazemos dela me parece sempre marcada por modelos de representação!
Vejam só: quem classifica o filme de "uma bela história de amor" não estaria vendo nele... uma história de amor?? Quem procura em Pilar, ou em quem quer que seja, um culpado para a morte (trágica, não?!?) do herói (Saramago) não estaria vendo nele... um thriller de mistério, buscando vilões? Ou uma tragédia clássica, com a morte final do protagonista sucumbido por suas próprias escolhas?

Não vou responder aqui ao "matou ou não matou", já disse... Mas... Olhem para o filme com olhos um pouco mais abertos. E talvez vocês consigam chegar a uma resposta só sua e, que, por repetida, talvez possa ser a de muitos. Contada de muitas maneiras. Porque tudo pode ser contado de outro modo.


PS - Miguel: teu trabalho se apossou de mim por vários dias e noites, me tirou o sono, me emocionou às lágrimas. Obrigada por isso.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

NOSSA "NOVA" VENDEIA


No último dia 27 de outubro, eu, que quase nunca vejo telejornais, fui surpreendida de TV ligada pela notícia da prisão de 3 alunos no estacionamento da minha Faculdade. Os alunos, segundo a matéria, fumavam maconha quando foram surpreendidos por soldados da PM que patrulhavam o local. Seguiram-se protestos acalorados, o delegado responsável foi chamado, seu carro depredado. Os estudantes gritavam palavras de ordem: "Fora PM do campus!" 
"Isso ainda vai dar muita confusão", pensei. Dito e feito. Após invasão do prédio da Administração da FFLCH e do prédio da Reitoria da USP, cerca de 400 policiais efetuaram a desocupação deste último pela manhã do dia 8 de novembro:

"A reintegração de posse da reitoria da USP (Universidade de São Paulo) terminou por volta das 7h20 da manhã desta terça-feira (8). Cerca de 70 pessoas foram detidas e estão seguindo para a 91ª DP. Segundo a informação mais recente da PM, eram 46 homens e 24 mulheres." 


Ontem, vinte dias depois, greve de estudantes decretada, cheguei pela manhã para dar aulas para os alunos que quisessem comparecer. Aulas, propriamente, não - queria dar a eles alguma orientação para uma possível avaliação final, organizar a vida até o final do ano, que já está bem próximo. Achei que encontraria uma Faculdade esvaziada, mas calma. Mas o que vi foi bem assustador. 
Na porta, um piquete impedia a entrada de alunos. O diretor do meu departamento estava lá, conversando com os grevistas. Foi quase agredido, e ele, que é pequeno e em geral bem contido, alterou-se, falou grosso, discutiu feio. Fiquei sabendo também que, mais cedo, a Diretora da Faculdade tinha estado por ali, tentando negociar com os estudantes em greve. Também se alterou, também foi agredida, com palavras, ironia, acusações. Na minha sala de aula, havia alguns alunos, um pouco perdidos. Entrei, formei um círculo para conversar um pouco com eles, já intuindo que seria impossível qualquer esboço de aula formal naquela circunstância. De quando em quando, passavam estudantes "policiando" os corredores, verificando quem seriam os professores "fura-greve" (e os alunos, claro) e nos olhando feio.

Não vou entrar aqui na discussão fica-PM/sai-PM, greve-apoiada/greve-criticada, fura-greve/grevista, viva-Rodas/morra-Rodas. Mas tenho de dizer que toda essa situação na USP me lembrou Canudos.
Se todos recordam, logo após a proclamação da República, em 1889, criou-se no sertão da Bahia um grupo de pessoas, chefiado por um líder religioso e que recusava aceitar o governo republicano como legítimo. Enviado como repórter do jornal "O Estado de São Paulo" para noticiar a guerra que se sucedeu para abafar o movimento, que só ganhava adeptos, o escritor Euclides da Cunha comentaria:


"O homem e o solo justificam assim e algum modo, sob um ponto de vista geral, a aproximação histórica expressa no título deste artigo. Como na Vendéia o fanatismo religioso que domina as suas almas ingênuas e simples é habilmente aproveitado pelos propagandistas do império.
A mesma coragem bárbara e singular e o mesmo terreno impraticável aliam-se, completam-se. O chouan fervorosamente crente ou o tabaréu fanático, precipitando-se impávido à boca dos canhões que tomam o pulso, patenteiam o mesmo heroísmo mórbido difundido numa agitação desordenada e impulsiva de hipnotizados."

E terminaria com o bordão de impacto que ficou famoso: "A República sairá triunfante desta última prova." (http://tinyurl.com/7mpcrfk)

Sabe-se que saiu mesmo. Com todo o povoado dizimado, cabeças cortadas. Sabe-se também o quanto o republicanismo ferrenho de Euclides saiu abalado com a visão da matança - que ainda não tinha acontecido enquanto ele escrevia os artigos da Vendeia, daí sua adesão "feliz" às tropas do governo no momento. 

Mas o que me incomoda realmente nem é tudo isso. No final dos anos 1990, o Prof. Willi Bolle esteve no sertão de Canudos, fazendo pesquisas, e conseguiu entrevistar ainda alguns sobreviventes do massacre, 100 anos depois. Questionado sobre o sentido de Canudos, um deles respondeu ao professor: "Só faltou uma conversa".

Definitivamente: não consigo enxergar certos e errados no que está acontecendo na USP hoje. Melhor: consigo enxergar muitos certos e muitos errados. Mas o que mais me incomoda é a repressão. Não à ocupação da Reitoria, não a algumas práticas dos estudantes. A repressão ampla, geral e irrestrita. A mordaça completa. Ninguém ali pode falar. - Nós -  não temos o direito à opinião. Não há democracia real. E se a falta de democracia é exercida sobre os estudantes, ou sobre a administração, ela tem recaído com força, sim, é sobre os professores. Estamos, sim, subalternizados nesse processo, policiados por todos, mas também - e surpreendentemente - por aqueles a quem deveríamos ensinar. Não temos voz. Não temos direito ao gesto sem que sejamos cerceados e, por que não dizer, violentados, física ou moralmente.

Canudos estava certo? As forças de repressão a Canudos estavam certas? Que intenções havia por trás do povoado? Por trás do aparato militar?

Para além da complexidade extrema de todos esse processo, muito mais ampla do que se tem feito acreditar, ainda respondo com a fala do sertanejo - "antes de tudo um forte", segundo Euclides -, tratando do massacre de cerca de 25 mil pessoas: "Só faltou uma conversa". 




quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Eu, leitor: Desejo que não quer deixar de ser desejo

Compartilhando...
Eu, leitor: Desejo que não quer deixar de ser desejo: "Em hebraico, diríamos um 'desejo de Shalom' . O Shalom que normalmente traduzimos por 'paz' significa 'estar inteiro'. Nós não estamos em ...

terça-feira, 6 de setembro de 2011

OS DEUSES DO SEXO


"Verdade
Seu nome é mentira"
(Carlinhos Brown)


O mundo de hoje não é nada literário.
Já trabalho em sala de aula há muito, muito tempo (ê, vecchiaia brutta, diria minha avó…), e não é de agora que os alunos torcem o nariz para tudo o que se chama “literatura”. “De que vai me servir ler isso?”, perguntam uns. “Quanto é mesmo que vc ganha, p’sora?”, vêm outros. Há uns dez ou doze anos, numa das maiores escolas de São Paulo, um adolescente de 16 ou 17 se levantou no meio de uma aula minha e saiu gritando e batendo a porta atrás: “Você é louca!!!!! Looooooooucaaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!! Acha que não tenho nada mais pra fazer na vida do que ficar lendo esses livros que você mandaaaaaaaaaaaaaa!!!...” Surtou, fazer o quê? (será que “literatura” é sinônimo de “loucura”, ou é só semelhança fonética?...)
Em outras situações, “literatura” é quase um xingamento, o oposto de pragmatismo, realismo, objetividade, conhecimento: “o que você está propondo é l-i-t-e-r-a-t-u-r-a! Não tem como fazer!!”
Desde Baudelaire é assim. Ou talvez antes. O poeta flanando sem rumo e sem uso pelas ruas de Paris, albatroz pisoteado por botas imundas, cheirando a peixe, sobre o convés de um navio:

Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.

À peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes 
[blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.

Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!

Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.


(Charles Baudelaire, “L’albatros”, in Les Fleurs du Mal, 1861 – não consegui cortar o texto, tão lindo! Segue inteiro.)


O gauche de Drummond, o “errado assim” de Chico Buarque têm essa origem – mas isso já é outra história… “Enfermos que voa(á)vam(os)”, vamos vagando por aí, meio sem rumo, leprosos de uma especie de contágio, os que escrevem, os que leem, mendigos de um tipo de alimento (ou de reconhecimento) que raramente ocorre encontrar, até que…

Há uns oito meses mais ou menos, Karl publicou no Ecce Medicus (www.scienceblogs.com.br/eccemedicus - leitura super recomendada!) um post intitulado “Vibes Linguísticas”. Por favor, me entendam: o Ecce Medicus é um blog… científico (Scienceblogs, remember?...). O Karl é médico, gente! Então, imaginem a minha surpresa ao ler lá algo assim:

“Devo muito do meu gosto por escrever a esse cara (quem sabe um dia aprendo, né?). No dia 26 de Dezembro de 2010 ele faria 119 anos. Henry Valentine Miller foi meu companheiro de plantões em clubes. Fazia ‘exame de piscina’. Se fazia sol, trabalhava muito. Mas, quando chovia, viajava com ele por Paris e Nova Iorque. Por entre ‘pernas e delícias’, eu, menino nerd e sem dinheiro, fui aprendendo que só há um meio de sermos verdadeiramente livres: a literatura.”

“Só há um meio de sermos verdadeiramente livres”? Vocês são capazes de imaginar meus olhos arregalados e meu queixo caído, completamente?

Levei uns dias até conseguir me refazer do susto e “mastigar” todas as palavras do post. Levei meses pensando nesta resposta, amadurecendo os parágrafos, dormindo e acordando com os pensamentos, até que, como sempre acontece comigo, que escrevo muito devagar, gestando frases no silêncio, este texto começou a me incomodar. E, quando incomoda, quando assombra e retorna, então está na hora de escrever, não tem mais jeito.
Nunca li Miller por inteiro. Li Anaïs Nin, há muito, muito tempo, pós-adolescente ainda. E fui ler meu primeiro Miller, O mundo do sexo, no meu período gestacional-pensamental pós-post do Karl, que diz, entre outras coisas:

“Só há um meio de sermos verdadeiramente livres: a literatura.”

“Quando (e se) transformamos nossa vida em literatura então, a coisa fica bem mais interessante.”

“Distorção e deformação são inevitáveis no processo de re-viver a nossa vida. O propósito íntimo de tal desfiguração, obviamente, é captar a verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos.” (Miller, de O Mundo do Sexo, citado no post)

“O paradoxo é que, se por um lado, somos verdade-aditos, sempre em busca do que acreditamos ser a verdade, por outro, criamos mundos fantasiosos para fugirmos dela.”


E, por fim, mas não na ordem do post,


“O mundo de Miller é um mundo onde o sexo tem uma dimensão sacra. Liberdade e criação. A redenção do humano em seu comportamento sexual.”


Literatura. Verdade. Liberdade. Criação.

Eu tinha uns 16 anos (quase no tempo em que os bichos falavam, nossa, to saudosista ultimamente…) quando comecei, no corredor da minha escola, paulista e tradicional, uma conversa com meu professor de literatura. Adorava falar com ele. Eu lia doidamente, apaixonadamente, desde que o mundo era mundo pra mim - influência da minha mãe. Aos 16, conhecia Drummond, todos os Hermann Hesse traduzidos para o português, vários Richard Bach, as Pollyannas, todo o Monteiro Lobato infantil, a mitologia grega, os contos de fadas do Ocidente e do Oriente, Machado de Assis, Alencar, grandes clássicos da literatura mundial (Os três mosqueteiros, Robinson Crusoe, a Ilíada  e a Odisséia, O homem da máscara de ferro, A volta ao mundo em oitenta dias, uma coleção imensa de 50 volumes que ganhei da madrinha), os poetas românticos brasileiros. Tínhamos em casa um livrão de antologia dos românticos (tínhamos, não: ele ainda está lá...). Uma das minhas primeiras lembranças literárias é da minha mãe lendo para mim (teria o quê, 7 anos?), não uma história infantil antes de dormir, que nada! O que ela me lia era assim:

“Sou bravo, sou forte
Sou filho do Norte
Meu canto de morte
Guerreiros, ouvi!”

É, gente, o “I-Juca-Pirama” do Gonçalves Dias mesmo. Com direito a explicações: “o índio foi preso por índios de uma outra tribo, sabe, e tem de fazer como o pai, ser corajoso”…  Será que é por isso, Karl, que eu não choro nos hospitais (“sou bravo, sou forte”, etc....)?
Bom: conversava com meu professor de literatura, eu dizia, uma das pessoas mais importantes e influentes da minha vida. Tinha me caído uma ficha assim (e era o que eu perguntava a ele, naquele dia, com a empáfia meio tímida dos meus 16 anos): “Você não acha que a literatura é a história do interior do homem? Daquilo que ele sente e pensa, daquilo que a História não fala?” (talk about “menino(a?) nerd”…)
Literatura e verdade. Não sei, Karl. Mas acho que já naquela época, tão criança que eu era, já intuía na literatura, nesses “mundos fantasiosos que criamos” para fugir da verdade, algo muito próximo da “verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos”. E até hoje acredito que muitas vezes a ficção faz vislumbrar, muito mais do que o discurso generalizante e uniformizador da ciência, aspectos, fragmentos de uma verdade humana, fugaz, caótica e estarrecedora que há poucos outros meios de alcançar. Isso porque a ficção se debruça sobre o particular, o pequeno, o único, o próprio. E, nesse próprio e nesse único, há, na verticalidade, um universal que é difícil definir em palavras e que talvez tenha a ver com o partilhar da experiência. Paradoxal - acho que sim. Mas a vida é paradoxal, será que não? Então, talvez não criemos mundos fantasiosos para fugir da verdade, mas para nos encontrarmos inteiramente e intermitentemente nela? Não sei. É uma pergunta. E, se conhecer a verdade é uma das maneiras de sermos realmente (mas nunca completamente) livres, então a literatura talvez seja, sim, um dos poucos acessos que temos à liberdade (embora não o único), e você tenha, sim, toda a razão…

Agora, a segunda parte. Miller. O sexo.

Fui ler Henry Miller ávida de sexo (uau!!!...). Mas não de qualquer sexo, não. Queria ler lá “o mundo onde o sexo tem uma dimensão sacra”, “a redenção do humano em seu comportamento sexual” - “a verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos”, afinal. E, talvez seja meu desconhecimento de Miller, talvez o fato de não ter lido a “Crucificação Encarnada”. Mas sabe que eu procurei, procurei, e não vi muito isso em O mundo do sexo?
Tem palavrões, sim, muitos! O texto é “forte”, como você me declarou uma vez - expressão que minha mãe também usaria pra falar de um livro impróprio pra crianças ou de um filme bem sexualizado (:P). Tipo O último tango em Paris, sabe?, que ela foi ver escondidinha quando o filme foi lançado com cortes no Brasil: “fooooorteee…”, com aqueles olhos azuis virados pra cima e as sobrancelhas bem levantadas…
Otto Maria Carpeaux, crítico literário da maior importância que assina a Apresentação de O mundo do sexo na edição da José Olympio, defende ali algumas obras chamadas “pornográficas” de proibições e de cortes, declarando que Henry Miller não foi um “sedutor diabólico, mas um apóstolo da liberdade”, porque “a liberdade […] é mais importante do que a defesa da moralidade de solteironas e de hipócritas” (Carpeaux, apud Miller: 2007, 16). No que concordo inteiramente! Mas será que a liberdade mais radical e verdadeira reside apenas na liberdade de utilizar a língua (no sentido de linguagem, aqui, veja bem… :-) ) como se bem entende, chamando as coisas por seus nomes “proibidos”?
Até certo ponto – e certo tempo – sim, com certeza. Chamar sexo de “foda” e vagina de “buceta” (me desculpem os leitores, estou citando o livro) ainda choca e faz corar quando estamos diante de um texto escrito, literário, publicado, “sério”, e chocava e fazia corar muito mais na época de Miller, estou certa disso. Conquistar o direito de pronunciar esses e todos os nomes, escrevê-los, repeti-los, é exercer uma liberdade de expressão sem amarras que cabe a todos nós. Em alguns contextos, mais ou menos, quer e faz agredir. É também expressar uma revolta contra o bom-mocismo e a hipocrisia. Mas - seria o suficiente?

E então, a segunda camada de liberdade. O sexo livre. Muuuuito sexo, muuuuuuitos parceiros(as), quase o tempo todo. "Império dos sentidos", instinto livre de amarras e de convençōes - ou contra amarras e convenções: princípio do prazer amplo, geral e irrestrito. O mundo do sexo é também isso. Conta lá o narrador/pensador de Miller, nesse livro que é uma mistura (bem resolvida?) de ensaio com narrativa autobiográfica "ficcional" (não, isso não é uma total inadequação de termos) que toma como amante uma mulher que não era aquela a quem jurara "amar para sempre"; que, com a amante, agia "como um maníaco armado com um machado enferrujado e atacando com ele freneticamente a torto e a direito"; que, ao voltar do dia em busca de trabalho,

"Lá estava ela, sua buceta, sempre aberta, sempre à minha espera. Pronta, como uma flor-armadilha, para me engolir inteiro." (O mundo do sexo, p. 52)

E que depois a amante se torna esposa. Para o narrador se tornar amante da mãe da esposa. E das amigas dela. E assim por diante. E sempre mais.
Em 1940, quando o livro foi escrito, em plena IIa Guerra, isso talvez  pudesse ser considerado novo, polêmico, revolucionário até. Pensem nos musicais hollywodianos e puritaníssimos da época. Pensem também naquele beijo tórrido entre Deborah Kerr e Burt Lancaster,



incendiando o preto-e-branco de A um passo da eternidade, de 1953, e enrubescendo as mocinhas. Pensem nos "ohs" e "ahs" escandalizados, nos moralistas de plantão, na caça às bruxas macarthista.Nesse sentido, sim, talvez Miller fosse um "hippie" classudo e afrancesado avant-la-lettre, mistura de Genet e Baudelaire com Pasolini, de Monet com Tennessee Williams, e precursor do Marcuse de Eros e civilização (1a ed. 1955). Nesse livro, praticamente esquecido em nosso tempo de banalização do eros, o filósofo alemão, "guru" da revolução sexual (ele foi apropriado assim), defende que, contra a noção freudiana do inevitável conflito

"entre o princípio de prazer e o princípio de realidade, entre sexualidade e civilização, milita a ideia do poder unificador e gratificador de  Eros, acorrentado e corroído numa civilização doente. Essa ideia implicaria que o Eros livre não impede duradouras relações sociais  civilizadas [e] que repele, apenas, a organização supra-repressiva das relações sociais, sob um princípio que é a negação do princípio de prazer". (Marcuse, 1999: 57)

Penso que isso talvez se pareça com o que declaram/almejam certos trechos mais "filosóficos" do livro de Miller:

"Admita ou não, o artista é sempre obcecado com o pensamento de recriar o mundo, a fim de restaurar a inocência do homem. Ele sabe além do mais, que o homem só pode recuperar sua inocência reconquistando sua liberdade. Liberdade, aqui, significa a morte do autômato." (O mundo do sexo, p. 25)

Não lembra o Marcuse?
E depois:

"Num de seus ensaios, D. H. Lawrence salientou que havia duas grandes modalidades de vida, a religiosa e a sexual. A primeira, declarou, tinha precedência sobre a segunda. O sexo era o caminho menor, dizia. Sempre pensei que só existe um caminho, o caminho da verdade, levando não à salvação, mas à iluminação. [...]
Parece fora de esquadro para o autor de Trópico de Câncer emitir tais opiniões? Não se observarmos debaixo da superfície! Apesar de liberalmente forrada de sexo aquela obra, a preocupação de seu autor não era com sexo, nem com religião, mas com o problema da auto-libertação." (O mundo do sexo, p. 24-25)

Sexo-liberdade. Literatura-liberdade. Vamos voltando ao nosso problema do início. Mas... onde a "verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos"?

E aí vem o que mais me incomodou no livro. Tenho percebido, cada vez com mais força ultimamente, que a essência do que é dito muitas vezes não está no que é dito, mas na forma como é dito. Vocês não acham isso? Muito mais que no conteúdo: na estrutura (corro o risco de ser - erroneamente - tachada de "estruturalista", mas tudo bem).
Então: é exatamente nisso que este livro de Miller é... estranho. Ele vai bem enquanto filosofa, acho. Defende bem - poética, lindamente - seus  pontos de vista, e para mim é muito fácil concordar com alguns deles. Mas as duas "vozes" que falam ali - a que pensa e a que conta -  não conversam... entre si!
Por um lado, temos um pensador que afirma:

"Podemos viver com alegria - devemos! - em meio a um mundo povoado de criaturas livres e sofredoras. Que outro mundo existe em que podemos gozar a vida? Eu sei isso, que não mais representarei pelo ato de representar, nem agirei só para me mostrar ativo." (O mundo do sexo, 100-1)

Por outro, um narrador-personagem que diz (sobre seu período parisiense, se não me engano):

Através de um inverno interminável eu dormi no fundo do poço profundo que cavara para mim mesmo. Dormi como um urso. E no meu sono era o problema do mundo que povoava meus sonhos.
Das janelas dos fundos do apartamento que ocupávamos, minha amante e eu, eu podia ver o quarto de dormir daquela que eu jurei amar para sempre. Era casada e tinha uma criança. Na época eu ignorava o fato de que ela morava nesta casa do outro lado do pátio; nunca sonhei que era dela a silhueta que enchia meus olhos e me deixava na mais negra infelicidade. Se apenas eu tivesse sabido, como ficaria grato de me sentar para sempre diante da janela, sim, até mesmo no esterco e na sujeira. [...]
Arrastando-me para a cama com a outra, eu passava horas terríveis pensando naquela que estava perdida para mim. Exausto, enfiava-me de novo no fundo do meu poço. Que forma abominável de suicídio! Não só eu me destruía e ao amor que me devorava, eu destruía tudo que encontrava pelo caminho, incluindo aquela que se agarrava desesperadamente a mim no sono. Eu tinha de aniquilar o mundo que fizera de mim sua vítima." (O mundo do sexo, 50/2)

Esperem aí um pouquinho: "fundo do poço profundo que cavara para mim mesmo"? "Problema do mundo"? "Arrastando-me para a cama"? "Horas terríveis"? "Forma abominável de suicídio"? Uai, mas onde está aqui "aquele que não mais representa pelo ato de representar"? Que pode dormir com a mãe, com um animal ou com a própria filha, satisfazendo seu desejo sem culpa (O mundo do sexo, 102)? Aquele para quem o sexo não é o sexo, mas a "auto-libertação"? Se assim fosse, por que sofrer com o sexo pelo sexo? Por que sofrer por "aquela que estava perdida para mim" e, sofrendo, também perder-se? Onde a liberdade? Onde a "verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos"? Faça o que eu digo, não faça o que eu faço? Por que é que, nesse universo de linguagem que é O mundo do sexo, narrador e pensador, em sendo o mesmo, são tão outros? Que estrutura mais Dr. Jackyll e Mr. Hide é essa, em que aquele que age não é o mesmo que pensa, sendo os dois a mesma voz?
(Fiquei meio brava com isso. Além de tudo, tem a coisa de ficar sexualmente excitado com qualquer mulher chorando atrás da janela: "Uma mulher soluçando no escuro em geral significa uma mulher implorando por amor" (O mundo do sexo, 108). É possível isso????????? Juro que podia ter dormido todos estes meses sem essa, mas isso já é outro assunto...)
Então: uso (libertário?) do calão, sim. Pensamento que encaminha filosoficamente a relação entre sexo e liberdade, sim. Mas onde o transformar a literatura em vida, a vida em literatura? Do ponto de vista ficcional - e, pensando que em Miller a ficção é tida como autobiográfica -, não vi muito disso não... (Estou querendo muito de um autor do início do século passado? Claro que sim! Sou exigente mesmo :-) ) E, aí, como amarrar todas essas pontas?

Vou procurar fazer isso com uma espécie de confissão pessoal. Corajosa, viu?, e que é a seguinte: não sou, nunca fui uma pessoa de muitos parceiros (sexualmente falando, mesmo), e estou muuuuuuuuuuuuito, mas muuuuuuito longe do "paraíso" (??) chamado por Miller de "A Terra da Foda"... Nunca fui assim. Mas tenho uma opinião sobre sexo que talvez valha a pena compartilhar aqui e faça com que a gente consiga vislumbrar a possível relação disso tudo.
Bom, então aí vai: não todo, e não sempre. Mas sexo, eu acho, é encontro. Como muitas outras coisas na vida: um médico consultando um paciente. Um professor percebendo um brilho novo no olho de um aluno. Um abraço entre mãe e filho. Um leitor e um texto. Um homem e uma mulher (dois homens, duas mulheres, o gênero aqui não importa...).
Só que, nesse encontro que é o sexo - e isso já não é tão comum de acontecer -, os participantes, literalmente, se despem (não sempre, ta bom, há histórias bem bizarras a respeito. Mas na maioria das vezes. Pode ser?) Então. Sempre tive a impressão de que, quando acontece, esse despir-se é total - mesmo quando não há muita consciência disso. Não existe muita dissimulação possível no sexo - embora mitologicamente se diga que sim, e vários(as) tentem (dizem até que é artimanha feminina)... Na minha experiência, ali, não é permitido fingir: paixão, entrega, cansaço, desinteresse, afeto, desamor, narcisismo, culpa, pura atração, descaso, amor imenso. Está tudo ali, e é o que é. Por isso é que talvez não haja bons amantes e maus amantes. Homens e mulheres sensuais ou não sensuais. No limite, o belo e o feio. Existe, sim, aquilo que há entre os parceiros. Existe, sim, a natureza da relação. E, ali, feia ou bonita, é ela que se desnuda. Inteira. E, de alguma forma, a própria natureza dos parceiros, já que é ela, uma parte dela, aquilo que se relaciona; aquilo que, por inteiro, mas nunca totalmente, é ativado nesse encontro: às vezes o melhor de mim. Às vezes não.
E, quando é o melhor que ali se ativa, como dizer?, há algo do profundo de uma entrega em que o que busco não é o eu, mas o outro: aquilo que eu sou, e me alimenta; aquilo que eu não sou, e me completa. Não o eu - o outro. Não uma "auto-libertação", ou um autoconhecimento, como em Miller; mas um heteroconhecimento, uma heterolibertação que, no contraste e no confronto com o outro, é, sem nenhuma sombra de dúvida, um conhecimento e uma libertação do mais profundo de mim.
Sem sombra de dúvida mesmo - porque, nesse processo, não há sombra possível.... Há um trecho lindo de A Jangada de Pedra, do José Saramago, em que dois personagens finalmente se unem (sexualmente falando) e, do alto do monte próximo, sob o luar, um terceiro observa a casa no vale que os abrigava: "Parecia haver sobre ela uma aura, um fulgor sem brilho, uma espécie de luz não luminosa" (Saramago, 1997: 185)... Há, nesse encontro, algo que se aproxima da verdade. De alguma verdade, precária e fugaz. Nada científica, com certeza.
E talvez seja nisso, Karl, que literatura e sexo se aproximem pra mim, e que ambos se aproximem da... verdade? Literatura também é encontro... Uma forma muito particular e especial de encontro em que se partilham experiências muito, muito vivas e, nessa relação - às vezes no próprio corpo da mentira - algumas verdades se constroem. Será que é assim? Porque, pensando bem, quem é que disse que as histórias "verídicas" que contamos todos os dias são, assim... verídicas? Paradoxal, será? :-)
E, pensando ainda melhor, talvez não seja à toa que o texto bíblico - o bíblico! - una, justamente, Verbo, Sexo e Verdade. Afinal, qual foi mesmo a história do pecado de Adão e Eva? Comeram do fruto da árvore do conhecimento e se descobriram nus? Ou se descobriram nus e comeram do fruto da árvore do conhecimento?
"Sereis como deuses", disse a Serpente. Literatura, verdade, liberdade, criação. Para mim, não tem mesmo jeito: a verdade - sartrianamente infernal que seja - está no outro, seja ele livro ou gente, acho que é isso. É lá que vive aquilo de mim que eu desconheço. E, nesse encontro - que pode nunca acontecer!, ou somente uma ou duas vezes na vida, quem sabe, ou muitas vezes - refaz-se toda a existência de todos os tempos possíveis e fulgura uma verdade. Nesse momento, sim, Karl, sumus sicut dii: somos como deuses. E depois não mais. E talvez mais uma vez, depois. E fim. :-)


(Peço desculpas por ter demorado tanto tempo em escrever. Nem sei se consegui me fazer assim tão clara... Nem sempre é fácil dizer certas coisas.)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O SEGREDO DA CRISÁLIDA

Os editores da Crisálida fizeram questão de colocar o nome de cada autor no convite do lançamento!...
Super gentil, mas são quase noventa autores! Trabalho de Hércules!! :)

De qualquer modo, estou feliz de ver a "cria" lá, no livro.

Vou ficar mais se puder ver vocês lá! Uau!! Pelo menos vou poder me esconder no meio de todos e enganar a timidez!! :)

Beijos!

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A PORTA BRANCA

           “O leito 33 se encontra em procedimento de rotina da UTI. É favor aguardar”.
Uma porta branca, pesada, protegida por crachás e seguranças me separava da minha mãe. “Procedimento de rotina”. Que rotina? Tinha terminado há pouco uma cirurgia de quase sete horas. Tocou o telefone do quarto, pulei da cadeira. “Está tudo bem”, disse o cirurgião. “Tiramos um nódulo do pâncreas, um pedaço do estômago, a vesícula e o duodeno. Ela está ótima, nenhuma intercorrência. Mas passou uma jamanta por cima dela. Vamos ver como se recupera.”
Minha mãe, viva, estava lá dentro da porta pesada. Olhei o relógio. 20h35. Procedimento de rotina. Quero entrar correndo, até o leito 33. Não posso. Passo os olhos em volta: ocos. Bolinhas brancas ocas no meio da testa. Tanta gente nessa porta de UTI. Recepcionistas vestidas socialmente, de saltinho. Toc toc. Enfermeiros, um ou outro, de azul. Médicos, jalecos brancos conversando com famílias: “Que seria da gente sem o senhor, doutor?” A mulher loira, de meia-idade, bem vestida, mostrava o celular aos parentes do marido: “Olha só que graça. Tão lindinha…” Burburinho branco – atonal. As vozes nem subiam nem desciam. Vozes de robôs. Ou seria eu o robô? Perto de um jovem, um senhor japonês, mudo, torcia as mãos. “Pai e filho”, pensei. “Provavelmente é a mãe que está lá dentro”. Mãe?
20h40, e o silêncio. Procedimento de rotina. Minha mãe. Olhei para o rosto do meu irmão, da irmã, da cunhada. Levantei da cadeira, e nada de chamarem. Devo ter baixado os olhos. Um deles me disse – qual deles? -, “Você quer que eu entre primeiro, Fabi, você não gosta dessas coisas…” “De jeito nenhum, nem pensar! Primeiro vou eu. Eu vou primeiro”. “Mas, e se você desmaiar lá dentro?” “Se desmaiar, desmaiei.”
Eu realmente detesto essas coisas: tenho aflição de agulha, as pernas bambeiam com sangue. Sofro muito com o sofrimento de quem quer que seja, e jamais seria médica ou algo assim: não aguento. Apesar disso, tinha aplicado injeções diárias de insulina nos braços e nas pernas da minha velhinha, por uma semana, sempre tentando pensar que estava picando um peito de frango. Se pensasse em qualquer tipo de dor, era desmaio na certa. Saía de casa às oito e meia, nove da noite, pegava o carro, estacionava, subia, beijava o rosto assustado, “Vamos lá, mãe?”, lavava as mãos religiosamente, procurava o algodão, desinfetava o local (“Onde você quer que eu aplique hoje?”), media a dose na caneta e… pimba: aplicava. Depois tinha de ir até a cozinha tomar um copo e meio de coca-cola com gelo - muito gelo -, para me recuperar do choque. Ela ia também, enchia um copo com água, misturava açúcar: “para o caso de ter uma hipo à noite”, dizia. E eu ia embora. “Boa noite”. Até o dia seguinte.
De repente, ela amarelou. Uma semana depois de ter ficado internada por três dias, com infecção urinária grave, uns cinco dias depois de começarem as aplicações de insulina. Era sábado, eu sentada ao lado dela no sofá. Olhou para o lado da janela – e o branco do olho azul estava cor de açafrão. Percebi então o rosto, as unhas – tudo amarelo. “Mãe, você amarelou! Dá pra perceber?” “Não…”, ela disse. “Mas é. Que será isso?” Icterícia, pensei. “Se não melhorar até amanhã, ligo pra sua médica, tá?” Ela, minha mãe, tinha horror a médicos, fugia dos remédios.
E a icterícia não melhorou… Vieram os exames - alteradíssimos. Liguei para a doutora. Suspeita de hepatite medicamentosa pelo antibiótico contra a infecção urinária. “Mas”, dizia a voz ao telefone, “vocês vão precisar ir ao pronto-socorro e fazer novos exames. As taxas dela são de uma obstrução, precisamos descartar essa hipótese”. Era noite de sexta-feira. Ela tinha resistido violentamente à internação no outro hospital, quase arrancando as sondas dos braços, dizendo ao enfermeiro frases atravessadas – minha cunhada me contou. Como é que eu ia conseguir tirá-la de casa outra vez, à noite, levar para o pronto-socorro? “Me dê um tempo, doutora”, eu disse. “Se ela tiver febre ou dor, prometo que a levo para o hospital ainda hoje. Se não, amanhã cedo vou com ela. Eu me responsabilizo”. E aí começou o meu drama, minha enorme interrogação: como tratar com delicadeza essas urgências? Proteger, ao mesmo tempo que cuidar? Apaziguar, e ao mesmo tempo socorrer? Salvar, sem alarmar. Quando esperar? Quando apressar?
Nove da noite. Quase nove. A porta ainda fechada. Que tempo era aquele, diante daquela porta? Estávamos, todos ali, suspensos do tempo.
Então, no dia seguinte, o pronto-atendimento, os exames de sangue, os exames de imagem. Na ultrassonografia do abdômen, a médica entrou, olhou, examinou, digitou e saiu, dizendo “a senhora aguarde um pouco, o laudo já fica pronto”. Nenhuma frase no estilo “está tudo bem, fique tranquila”. Eu, que entendo nada de nada, mas já fiz uns duzentos ultrassons, congelei dos pés à cabeça: à distância, me pareceu ver na tela uns nódulos que não deveriam estar lá. Mas me recompus, “Vamos, mãe?”. Já eram quatro da tarde, estávamos ali desde cedo. Ela só reclamava de fome.
Voltamos para o nosso pedacinho de PA: o leito, uma mesinha, uma cadeira. Comprei revistas, fui pegar café. Na sala da frente, uma senhora idosa, que tinha caído e quebrado alguma coisa – o ombro, o braço? – gritava, alucinadamente, “Socorro, me tirem daqui, querem me prender, querem me matar!” Ela tinha urinado no leito, o cheiro de urina picava as narinas. Respirei, o que pude respirar. Fiz um carinho na cabeça querida, disse “Tenha um pouco de paciência, mãe. Eles já devem vir com notícias”. “Quero ir para casa”, ela respondeu.
Algumas horas ainda se passaram. Do vidro da sala da enfermagem, que eu ia espiar de vez em quando, conseguia ver o médico de plantão, uma gentileza de criatura, olhando exames, respondendo aos enfermeiros, falando ao telefone. Já eram quase seis da tarde quando ele entrou no quartinho: “Saíram seus exames, D. Izabel, e parece que a icterícia não tem a ver com o antibiótico. A senhora vai precisar ficar internada e fazer uma tomografia. Liguei para o Dr. Carlos Eduardo, que sua médica indicou. Ele vai passar no quarto mais tarde e explicar melhor tudo. Agora, a senhora vai tomar um líquido de contraste e fazer a tomo às nove da noite.”
Difícil descrever a reação dela. Arregalou para ele os olhos mais azuis e mais desesperados, os ombros caídos. Disse “Não, doutor, não faça isso comigo. Eu vou para casa hoje, prometo que amanhã volto, bem cedo, e me interno, faço esse exame. Me deixe ir embora hoje. Eu não trouxe nada agora. Prometo que volto amanhã e faço tudo o que me mandarem…” O Dr. Fabio (esse era o nome dele, tenho de lembrar, é quase o meu – “o nome que você teria se fosse homem”, minha mãe sempre me disse) se condoeu da situação, tenho certeza que sim, e ainda tentou consolá-la, umas palavras de incentivo, um carinho no ombro. Mas, se era preciso internar, o que fazer? Choramos muito juntas, abraçadas. Justo ela, minha mãe que nunca chora. “Me leva pra casa, Fabi”, ela dizia. Eu encostei a cabeça dela no meu ombro: “To aqui, mãe. Vamos fazer esse exame, precisamos ver do que se trata… Vai ficar tudo bem…”
Avisei a todos, peguei os papéis da internação, subi as escadas. Assinei termos de responsabilidade. Fui com ela para o quarto. Tive medo. Desse ponto em diante, nem me lembro muito bem. Acho que alguém chegou - meu irmão? irmã? -, e que fui para casa dar um beijo no meu filho, pegar umas roupas? Fui eu quem dormiu lá nessa noite? Não sei mais… Só sei que, quando voltei, ela já tinha feito o exame, Dr. Carlos já tinha passado e estávamos, então, esperando o resultado da tomografia. Não era dia nem noite. Para mim, era apenas o quarto: só um espaço, fora do tempo.
Nem uma semana depois, olhávamos para uma porta branca que nunca se abria. Dr. Carlos passou – ele também, tão alto, de jaleco branco… -, disse algumas palavras, falou da cirurgia. “Tiraram o nódulo do pâncreas, desobstruíram a passagem da bile, reconstruíram o sistema digestivo. Vamos, agora, ver a recuperação… Ela está sedada e entubada, mas resistiu bem.”
O horário de visitas da UTI à noite, sabem?, terminava às nove horas. Já eram nove. Nove e cinco. Por que não nos deixavam entrar?
Foi então que eu ouvi, de longe, alguém dizer “Familiares de Maria Izabel Carelli. Podem retirar o crachá. Leito 33. Até o fim do corredor, à direita”. Minha cunhada, com o crachá na mão, tentava negociar comigo uma trégua nos meus deveres de filha: “Tem certeza de que você quer ir primeiro? Não quer que eu vá e te conte como está? Você não vai se sentir mal? Não vai desmaiar?” “Eu vou primeiro. Deixa. Eu vou”, respondi. “Eu preciso ver. Preciso.”
Como explicar tudo ali para ela? Eu tinha internado minha mãe. Eu tinha ouvido com ela pela primeira vez o diagnóstico de nódulo cirúrgico no pâncreas. Eu tinha conversado com o cirurgião sobre o procedimento: quando? como? onde? Eu tinha dormido com ela na noite anterior à operação. E, mais que tudo, eu tinha dito a ela, na porta do elevador para o centro cirúrgico, “Firme e forte, mãe, aguenta firme, a gente está aqui fora te esperando. Firme e forte”. Eu tinha prometido que estaria esperando por ela aqui fora. Eu precisava estar lá.
Peguei o crachá, coração aos pulos, e disparei porta adentro. “Lavar as mãos, lavar bem as mãos. Primeiro as palmas, depois as costas. Entre os dedos. Debaixo das unhas. Punhos.” Tentava organizar meu pensamento numa logística de UTI. “Agora, álcool gel. Cadê o álcool gel?” E andava, andava, dois corredores, um posto de enfermagem. Leito 33. Leito 33? Onde diabos? Passo disparado, coração disparado. Enfermeiros de azul. Pias. Alguns rostos. Curva à direita, novo posto de enfermagem. Leito 33. Parei. Uma UTI com quartos separados. Nunca tinha visto uma assim.
Da porta, meio aberta, vi minha mãe. Deitada, sedada, respirando pelo aparelho num compasso ritmado e lento. Cheguei perto, fiz um carinho naquela testa. “To aqui, mãe. To aqui. Falei que a gente ia estar te esperando. Estamos aqui. E você aguentou firme e forte…” Ela estava dormindo… Precisava, talvez, de um beijo de príncipe para acordar?
Fiquei mais dois ou três segundos. Ainda olhei para trás antes de ir, joguei um beijo da porta, os olhos cheios (sou chorona demais, problema sério, não há rímel à prova d’água que dê jeito). Minha velhinha estava ali, viva. Tinha aguentado firme.
Fui saindo depressa, de cabeça baixa. Na sala de espera, abracei minha cunhada chorando muito, aos soluços. Desabafei. Muito difícil ver uma criatura tão amada naquela situação. Nesse período todo, tenho me perguntado muitas vezes: como é que se consegue manter a serenidade diante do sofrimento de quem se ama? Como fazer para manter a calma? Porque serenidade é o de que mais se precisa - com os outros, com a gente mesmo…
Mas o que queria contar mesmo eu ainda não contei. Nos seis dias que passei entrando e saindo da porta branca da UTI, à tarde e à noite, eu vi muita coisa, mesmo desejando ver nada. Entrava e saía de cabeça baixa, escondendo os olhos, procurando respeitar a privacidade dos que estavam naquele lugar e dos seus acompanhantes, até mesmo de médicos e enfermeiros. Mas eu tinha de atravessar a UTI inteira para ver minha mãe, e o olhar às vezes escapava: uma porta entreaberta. Um médico de branco a conversar com o familiar de um doente. Um ruído de televisão. Pares de olhos me observando quando eu passava. Eram pessoas que estavam ali. Um homem seminu, peludo, com a camisola do hospital meio jogada e as pernas abertas, ouvindo o Jornal Nacional, que virava para mim uma raiva bruta, sexual, no olho preto. Um senhorzinho entubado e inconsciente, rodeado de pessoas numa baia de cortinas. Um jovem, quase o rapaz na bolha de plástico, com um “capacete de oxigênio” digno do Darth Vader – embora branco… Uma senhora com a acompanhante, conversando animadamente. Sinhás de tempos distantes, troncos de árvores cortadas, trogloditas pré-históricos, viajantes do espaço. Médicos e enfermeiros de azul. Minha mãe. E o tu-tuu, tu-tuu, tu-tuu dos monitores de batimentos cardíacos, numa sinfonia estranha, de ensurdecer.
Todos gente, viajando numa bolha surreal por trás da porta branca, descolados de espaço e de tempo. Vozes de metal. E os aparelhos, tantos aparelhos. Como sobreviver num lugar assim? Inferno? Paraíso?
Nos seis dias em que minha mãe esteve na UTI, não consegui dormir em nenhum. Tinha pesadelos terríveis, e tantas vezes me senti culpada por deixar que ela ficasse ali, sozinha, por detrás da porta branca, com muitas máquinas monitorando pressão, respiração, batimentos cardíacos e taxas sanguíneas, mas sem ninguém para segurar aquelas mãos. E se ela acordasse no meio da noite? E se tivesse medo? E, nessas horas, quis demais que tivessem me cortado e suturado, que tivessem tirado um pedaço do meu estômago e do meu pâncreas, que tudo aquilo tivesse acontecido comigo. Que sou, talvez, um pouco mais calma do que ela. Que converso, à noite (e semanalmente, no divã…), um pouco mais com os meus monstros, negociando com eles as nossas divergências. E que durmo, mergulhada e descabelada, no amor daqueles que, de carne e de osso, de perto e de longe, grandes e pequenos, velam meu sono (“Não fica triste, mãe. Vou te dar um carinho…”, diz o meu filho de três anos…). Amores que são raras gotas do divino dadas espontaneamente a mim, e por isso mesmo mais inteiras, mais intensas - mais vivas.
“Between heaven and earth”. Inferno, ou paraíso? Morte, ou vida? Depois de ultrapassada a porta branca, fronteira que nos separa a todos daquele universo singular, levava os dias a me perguntar como era possível que, em sã consciência, houvesse pessoas que escolhessem trabalhar ali. Atravessava a Paulista, já se vestindo de Natal, pensando no Dr. Carlos, o clínico da minha mãe. Ô, homem preocupado. Ligado. Ele não tem nada de insensível… No entanto, é médico de UTI… Naquele lugar estavam os seres humanos nas condições mais precárias que já avistei. E ele enfrentava, quase todos os dias, o troglodita, o astronauta, a senhora de engenho e tantos outros… Olhava e tocava a DOR… E saía vivo? São? Inteiro? (ou “só o pó”, como dizia às vezes…) Sem nem um copo de coca-cola com gelo – muito gelo -? “Jingle bells…”
Quem nunca viveu uma UTI não sabe o que ela significa. Eu também não sabia, até que me foi permitido entrar lá. Algumas vezes, no meio da tarde, atravessava os corredores alvos e, no quartinho com janela que era o leito 33 (sim, minha mãe tinha uma janela para a vida!), via de pé o Dr. Carlos, jaleco branco, conversando com ela… As máquinas continuavam lá – tu-tuu, tu-tuu, tu-tuu -, mas eu conseguia surpreender nela um esboço de sorriso, nele o despertar de uma piada, um gesto de carinho, um abraço. Eu dava um passo para trás, para não rasgar o véu da delicadeza… – e ele me via e me dizia “Não não não não, vem pra cá, fica com ela, vou deixar vocês…”.
Numa noite escura, as luzes do quartinho apagadas, já quase no final da visita, Dr. Paulo, o cirurgião, entrou por trás de mim pela portinha estreita, me deu um beijo no rosto – “Oi oi oi…” -, depois se postou ao lado do leito, beijou as mãos da minha velhinha, passou as mãos pelos cabelos dela, olhou fundo nos olhos azuis e perguntou: “Como a senhora está?” Era a véspera da alta da UTI. “Estou um pouco melhor, doutor”, ela respondeu. “Amanhã a senhora vai para o quarto”. Minha mãe abriu um sorriso, olhou para o Dr. Paulo de um jeito frágil (coisa rara, ela é fortona…) e disse: “o senhor sabe, passo os dias e noites aqui pensando no que vou fazer quando sair daqui. Porque, entende?, quero fazer algo de útil… Desde que eu me aposentei, vivi só para os filhos. E valeu a pena, sabe?, foi muito bom. Mas agora eles foram embora, e eu fiquei sem ter o que fazer. Tem os meus netos – eu ADORO os meus netos, todos! -, mas não tenho mais energia para ficar com eles…  E aí penso em fazer um trabalho voluntário, cuidar de crianças carentes… Mas acho que não vou aguentar… Então, acho que vou escrever…”- e ela olhou para o médico com um sorriso -, “Eu sempre gostei de escrever, o senhor sabe? Vou escrever um conto sobre como é enfrentar uns dias na UTI…” Ela tinha acabado de passar por uma cirurgia enorme, e queria ser “útil”. E foi, durante esse tempo, a sensação da Terapia Intensiva: irônica, espirituosa, “ligada”, perceptiva. “A senhora é fogo, D. Izabel…”, dizia o Dr. Carlos, levantando os olhos para mim com aquela expressão de “quem é que pode com ela?”…
Nessa noite, saí do hospital com lágrimas nos olhos e, dirigindo sozinha pela Paulista afora, tive de ligar para o celular do Dr. Paulo. Agradecer a ele, não apenas pela competência, enorme, mas também pela leveza. Pela alegria (quem nunca ouviu o Dr. Paulo gargalhar não sabe o que é ser alegre sem afetação, e sem tampouco perder a seriedade fundamental de alguns momentos). E a resposta dele: “Aquela conversa de hoje foi tudo”.
Na tarde do dia seguinte, minha mãe saiu da UTI. Não pela porta branca: esta, quem atravessou naquele dia fui eu, como em todos os outros, deixando para trás, naquele momento, o Neanderthal do olho preto, o soldado intergalático, a senhora da sala de estar. A família oriental e a avó loura e jovem da sala de espera. Os saltinhos das recepcionistas. O famigerado crachá eletrônico. A sinfonia esquisita da ultramoderna aparelhagem médica. Inferno, ou paraíso? Sonho, ou pesadelo?
Acho que eu também tive alta naquele dia. Abduzida, fui cuspida de novo no mundo e, apesar de ter experimentado, por dias e noites intermináveis, todo o choro e ranger de dentes daquela bolha estranha, talvez tenha percebido ali algo que nem o troglodita, nem o astronauta, nem a senhora e sua “serviçal” tenham visto. Não os aparelhos. Nem a assepsia. Não a tecnologia, nem tampouco a (inegável, ainda bem!) eficiência.
Na mesma noite, dormindo no hospital e olhando a internet, encontrei na rede um artigo do Dr. Carlos – ele e o Dr. Paulo, como eu, também são professores doutores, chiquérrimos! (muito mais chiques do que eu, claro…) No artigo, a respeito da chamada “Medicina Baseada em Evidências” (pelo que entendi, uma espécie de “vejo e penso, logo existe e será tratado assim” da ciência médica), ele diz:

“A MBE extrai sua força persuasiva da idéia subjacente a toda matriz cultural da sociedade ocidental moderna: a de que a prática científica é o modelo de prática racional. Baseando-se nas evidências científicas, a MBE se torna a maneira mais racional de fazer medicina. Como afirma Cronje: ‘A idéia de ação racional existe porque achamos útil distinguir ações baseadas na razão de ações baseadas em emoções, impulsos ou escolhas aleatórias - racionalidade, então, é o que protege nossas ações da arbitrariedade, subjetividade, viés e erro.’”

Mas, ele continua,

A hierarquização dos estudos, a quase aversão ao efeito placebo e as tentativas de quantificação do imponderável (experiências individuais dos pacientes, tipos de narrativas, impacto da doença na vida pessoal etc.) são facetas de uma racionalidade forçada ao limite que, ao exercer um papel para o qual não foi desenvolvida, geram tensão e ansiedade em ambos os lados da mesa do consultório.”

Ao ler isso, de olhos bem abertos, me lembrei do trecho do texto de Gruzinski de que tanto gosto:

“Prigogine, em Les Lois du chaos, cita Popper, que ‘fala de relógios e nuvens. A física clássica interessava-se antes de tudo pelos relógios; a física de hoje, mais pelas nuvens’. Ele explica que a precisão dos relógios continua a obcecar nosso pensamento, levando-nos a acreditar que se pode atingir a precisão dos modelos particulares, e praticamente únicos, estudados pela física clássica. Mas o que predomina na natureza e no nosso ambiente é a nuvem, forma desesperadamente complexa, imprecisa, mutável, flutuante, sempre em movimento.”

         Não somos relógios, nem nuvens. Mas somos parte de uma natureza complexa, imprecisa, mutável, flutuante, sempre em movimento. Todo organismo funciona segundo um padrão. Toda doença tem um padrão. Mas padrões são generalizações, construídas pela ciência.
Para além da porta branca, eu não vi números. Vi histórias. Imponderáveis narrativas de época, de terror, de ficção científica, de comédia, de drama, com finais igualmente surpreendentes. Tratados com os mesmos aparelhos, quantificados sob os mesmos critérios, mas completamente diversos em sua constituição singular: a sinhá, o troglodita, o astronauta. Minha mãe.
Também únicos são os médicos que cuidaram dela, e que me fazem, hoje, rever um pouco a total descrença na ciência médica que desenvolvi ao longo dos anos. E não apenas porque são profissionais habilitados, competentes, sabedores do que fazem. Mas, principalmente, porque têm alguma noção de que são gente. Gente que cuida de gente.
Saí da porta branca mais dura, calejada, mas mais esperançosa. Não na medicina: nos médicos. Naqueles que acreditam numa humanização profunda de sua prática - porque, afinal, tratam pessoas. Dão nó em pingo d’água. Buscam “a fórmula do acaso”. São observadores de nuvens.
Depois de tudo o que passamos, depois do presente da vida, que desafia todas as ponderações, só me resta aqui registrar minha homenagem aos que “doeram” conosco essa história: filhos, familiares, companheiros, enfermeiros, amigos, funcionários. A senhorinha oriental que tinha o marido internado a dois quartos do nosso. A esposa solitária que cuidava do marido operado sem avisar ninguém. Os garçons do hospital: “bom dia, como a senhora está hoje?” E, a mais especial, a esses médicos maravilhosos e seu instrumento mais revolucionário. Eles têm coração. Between heaven and earth.