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quarta-feira, 14 de setembro de 2011
terça-feira, 6 de setembro de 2011
OS DEUSES DO SEXO
"Verdade
Seu nome é mentira"
(Carlinhos Brown)
O mundo de hoje não é nada
literário.
Já trabalho em sala de aula há
muito, muito tempo (ê, vecchiaia brutta,
diria minha avó…), e não é de agora que os alunos torcem o nariz para tudo o
que se chama “literatura”. “De que vai me servir ler isso?”, perguntam uns.
“Quanto é mesmo que vc ganha, p’sora?”, vêm outros. Há uns dez ou doze anos,
numa das maiores escolas de São Paulo, um adolescente de 16 ou 17 se levantou
no meio de uma aula minha e saiu gritando e batendo a porta atrás: “Você é
louca!!!!! Looooooooucaaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!! Acha que não tenho nada mais pra
fazer na vida do que ficar lendo esses livros que você
mandaaaaaaaaaaaaaa!!!...” Surtou, fazer o quê? (será que “literatura” é
sinônimo de “loucura”, ou é só semelhança fonética?...)
Em outras situações, “literatura” é
quase um xingamento, o oposto de pragmatismo, realismo, objetividade,
conhecimento: “o que você está propondo é l-i-t-e-r-a-t-u-r-a! Não tem como
fazer!!”
Desde Baudelaire é assim. Ou talvez
antes. O poeta flanando sem rumo e sem uso pelas ruas de Paris, albatroz
pisoteado por botas imundas, cheirando a peixe, sobre o convés de um navio:
Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.
À peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes
[blanches
[blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.
Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!
Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.
(Charles
Baudelaire, “L’albatros”, in Les Fleurs
du Mal, 1861 – não consegui cortar o texto, tão lindo! Segue inteiro.)
O gauche de Drummond, o “errado assim” de Chico Buarque têm essa
origem – mas isso já é outra história… “Enfermos que voa(á)vam(os)”, vamos
vagando por aí, meio sem rumo, leprosos de uma especie de contágio, os que
escrevem, os que leem, mendigos de um tipo de alimento (ou de reconhecimento)
que raramente ocorre encontrar, até que…
Há uns oito meses mais ou menos,
Karl publicou no Ecce Medicus (www.scienceblogs.com.br/eccemedicus - leitura super
recomendada!) um post intitulado “Vibes Linguísticas”. Por favor, me entendam:
o Ecce Medicus é um blog… científico
(Scienceblogs, remember?...).
O Karl é médico, gente! Então, imaginem a minha surpresa ao ler lá algo assim:
“Devo muito do meu gosto por escrever a esse cara (quem sabe um dia
aprendo, né?). No dia 26 de Dezembro de 2010 ele faria 119 anos. Henry Valentine Miller foi meu companheiro de plantões em clubes. Fazia ‘exame de piscina’. Se
fazia sol, trabalhava muito. Mas, quando chovia, viajava com ele por Paris e
Nova Iorque. Por entre ‘pernas e delícias’, eu, menino nerd e sem dinheiro, fui
aprendendo que só há um meio de sermos
verdadeiramente livres: a literatura.”
“Só há um meio de sermos
verdadeiramente livres”? Vocês são capazes de imaginar meus olhos arregalados e
meu queixo caído, completamente?
Levei uns dias até conseguir me
refazer do susto e “mastigar” todas as palavras do post. Levei meses pensando
nesta resposta, amadurecendo os parágrafos, dormindo e acordando com os pensamentos,
até que, como sempre acontece comigo, que escrevo muito devagar, gestando
frases no silêncio, este texto começou a me incomodar. E, quando incomoda,
quando assombra e retorna, então está na hora de escrever, não tem mais jeito.
Nunca li Miller por inteiro. Li
Anaïs Nin, há muito, muito tempo, pós-adolescente ainda. E fui ler meu primeiro
Miller, O mundo do sexo, no meu
período gestacional-pensamental pós-post do Karl, que diz, entre outras coisas:
“Só há um meio de sermos verdadeiramente livres: a literatura.”
“Quando (e se) transformamos nossa vida
em literatura então, a coisa fica bem mais interessante.”
“Distorção e deformação são inevitáveis no processo de re-viver a nossa
vida. O propósito íntimo de tal desfiguração, obviamente, é captar a verdadeira
realidade das coisas e dos acontecimentos.” (Miller, de O
Mundo do Sexo, citado no post)
“O paradoxo é que, se por um lado,
somos verdade-aditos, sempre em busca do que acreditamos ser a verdade, por
outro, criamos mundos fantasiosos para fugirmos dela.”
E,
por fim, mas não na ordem do post,
“O mundo de Miller é um mundo onde o
sexo tem uma dimensão sacra. Liberdade e criação. A redenção do humano em seu
comportamento sexual.”
Literatura. Verdade. Liberdade.
Criação.
Eu tinha uns 16 anos (quase no tempo
em que os bichos falavam, nossa, to saudosista ultimamente…) quando comecei, no
corredor da minha escola, paulista e tradicional, uma conversa com meu
professor de literatura. Adorava falar com ele. Eu lia doidamente,
apaixonadamente, desde que o mundo era mundo pra mim - influência da minha mãe.
Aos 16, conhecia Drummond, todos os Hermann Hesse traduzidos para o português,
vários Richard Bach, as Pollyannas, todo o Monteiro Lobato infantil, a
mitologia grega, os contos de fadas do Ocidente e do Oriente, Machado de Assis,
Alencar, grandes clássicos da literatura mundial (Os três mosqueteiros, Robinson
Crusoe, a Ilíada e a Odisséia,
O homem da máscara de ferro, A volta ao mundo em oitenta dias, uma
coleção imensa de 50 volumes que ganhei da madrinha), os poetas românticos
brasileiros. Tínhamos em casa um livrão de antologia dos românticos (tínhamos,
não: ele ainda está lá...). Uma das minhas primeiras lembranças literárias é da
minha mãe lendo para mim (teria o quê, 7 anos?), não uma história infantil
antes de dormir, que nada! O que ela me lia era assim:
“Sou bravo, sou forte
Sou filho do Norte
Meu canto de morte
Guerreiros, ouvi!”
É, gente, o “I-Juca-Pirama” do
Gonçalves Dias mesmo. Com direito a explicações: “o índio foi preso por índios
de uma outra tribo, sabe, e tem de fazer como o pai, ser corajoso”… Será que é por isso, Karl, que eu não
choro nos hospitais (“sou bravo, sou forte”, etc....)?
Bom: conversava com meu professor de
literatura, eu dizia, uma das pessoas mais importantes e influentes da minha
vida. Tinha me caído uma ficha assim (e era o que eu perguntava a ele, naquele
dia, com a empáfia meio tímida dos meus 16 anos): “Você não acha que a
literatura é a história do interior do homem? Daquilo que ele sente e pensa,
daquilo que a História não fala?” (talk about “menino(a?) nerd”…)
Literatura e verdade. Não sei, Karl.
Mas acho que já naquela época, tão criança que eu era, já intuía na literatura,
nesses “mundos fantasiosos que criamos” para fugir da verdade, algo muito próximo
da “verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos”. E até hoje acredito
que muitas vezes a ficção faz vislumbrar, muito mais do que o discurso
generalizante e uniformizador da ciência, aspectos, fragmentos de uma verdade
humana, fugaz, caótica e estarrecedora que há poucos outros meios de alcançar.
Isso porque a ficção se debruça sobre o particular, o pequeno, o único, o
próprio. E, nesse próprio e nesse único, há, na verticalidade, um universal que
é difícil definir em palavras e que talvez tenha a ver com o partilhar da
experiência. Paradoxal - acho que sim. Mas a vida é paradoxal, será que não?
Então, talvez não criemos mundos fantasiosos para fugir da verdade, mas para
nos encontrarmos inteiramente e intermitentemente nela? Não sei. É uma pergunta.
E, se conhecer a verdade é uma das maneiras de sermos realmente (mas nunca
completamente) livres, então a literatura talvez seja, sim, um dos poucos
acessos que temos à liberdade (embora não o único), e você tenha, sim, toda a
razão…
Agora, a segunda parte. Miller. O
sexo.
Fui ler Henry Miller ávida de sexo
(uau!!!...). Mas não de qualquer sexo, não. Queria ler lá “o mundo
onde o sexo tem uma dimensão sacra”, “a redenção do humano em seu comportamento
sexual” - “a verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos”, afinal. E,
talvez seja meu desconhecimento de Miller, talvez o fato de não ter lido a
“Crucificação Encarnada”. Mas sabe que eu procurei, procurei, e não vi muito
isso em O mundo do sexo?
Tem
palavrões, sim, muitos! O texto é “forte”, como você me declarou uma vez -
expressão que minha mãe também usaria pra falar de um livro impróprio pra
crianças ou de um filme bem sexualizado (:P). Tipo O último tango em Paris, sabe?, que ela foi ver escondidinha quando
o filme foi lançado com cortes no Brasil: “fooooorteee…”, com aqueles olhos
azuis virados pra cima e as sobrancelhas bem levantadas…
Otto
Maria Carpeaux, crítico literário da maior importância que assina a
Apresentação de O mundo do sexo na
edição da José Olympio, defende ali algumas obras chamadas “pornográficas” de
proibições e de cortes, declarando que Henry Miller não foi um “sedutor
diabólico, mas um apóstolo da liberdade”, porque “a liberdade […] é mais
importante do que a defesa da moralidade de solteironas e de hipócritas”
(Carpeaux, apud Miller: 2007, 16). No
que concordo inteiramente! Mas será que a liberdade mais radical e verdadeira
reside apenas na liberdade de utilizar a língua (no sentido de linguagem, aqui,
veja bem… :-) ) como se bem entende, chamando as coisas por seus nomes
“proibidos”?
Até
certo ponto – e certo tempo – sim, com certeza. Chamar sexo de “foda” e vagina
de “buceta” (me desculpem os leitores, estou citando o livro) ainda choca e faz
corar quando estamos diante de um texto escrito, literário, publicado, “sério”,
e chocava e fazia corar muito mais na época de Miller, estou certa disso.
Conquistar o direito de pronunciar esses e todos os nomes, escrevê-los,
repeti-los, é exercer uma liberdade de expressão sem amarras que cabe a todos
nós. Em alguns contextos, mais ou menos, quer e faz agredir. É também expressar
uma revolta contra o bom-mocismo e a hipocrisia. Mas - seria o suficiente?
E então, a segunda camada de
liberdade. O sexo livre. Muuuuito sexo, muuuuuuitos parceiros(as), quase o
tempo todo. "Império dos sentidos", instinto livre de amarras e de convençōes
- ou contra amarras e convenções:
princípio do prazer amplo, geral e irrestrito. O mundo do sexo é também isso. Conta lá o narrador/pensador de
Miller, nesse livro que é uma mistura (bem resolvida?) de ensaio com narrativa
autobiográfica "ficcional" (não, isso não é uma total inadequação de
termos) que toma como amante uma mulher que não era aquela a quem jurara
"amar para sempre"; que, com a amante, agia "como um maníaco
armado com um machado enferrujado e atacando com ele freneticamente a torto e a
direito"; que, ao voltar do dia em busca de trabalho,
"Lá estava ela, sua buceta, sempre
aberta, sempre à minha espera. Pronta, como uma flor-armadilha, para me engolir
inteiro." (O mundo do sexo, p.
52)
E que
depois a amante se torna esposa. Para o narrador se tornar amante da mãe da
esposa. E das amigas dela. E assim por diante. E sempre mais.
Em 1940, quando o livro foi
escrito, em plena IIa Guerra, isso talvez
pudesse ser considerado novo, polêmico, revolucionário até. Pensem nos
musicais hollywodianos e puritaníssimos da época. Pensem também naquele beijo
tórrido entre Deborah Kerr e Burt Lancaster,
incendiando o preto-e-branco de A um passo da eternidade, de 1953, e enrubescendo as mocinhas. Pensem nos "ohs" e "ahs" escandalizados, nos moralistas de plantão, na caça às bruxas macarthista.Nesse sentido, sim, talvez Miller fosse um "hippie" classudo e afrancesado avant-la-lettre, mistura de Genet e Baudelaire com Pasolini, de Monet com Tennessee Williams, e precursor do Marcuse de Eros e civilização (1a ed. 1955). Nesse livro, praticamente esquecido em nosso tempo de banalização do eros, o filósofo alemão, "guru" da revolução sexual (ele foi apropriado assim), defende que, contra a noção freudiana do inevitável conflito
incendiando o preto-e-branco de A um passo da eternidade, de 1953, e enrubescendo as mocinhas. Pensem nos "ohs" e "ahs" escandalizados, nos moralistas de plantão, na caça às bruxas macarthista.Nesse sentido, sim, talvez Miller fosse um "hippie" classudo e afrancesado avant-la-lettre, mistura de Genet e Baudelaire com Pasolini, de Monet com Tennessee Williams, e precursor do Marcuse de Eros e civilização (1a ed. 1955). Nesse livro, praticamente esquecido em nosso tempo de banalização do eros, o filósofo alemão, "guru" da revolução sexual (ele foi apropriado assim), defende que, contra a noção freudiana do inevitável conflito
"entre
o princípio de prazer e o princípio de realidade, entre sexualidade e
civilização, milita a ideia do poder unificador e gratificador de Eros, acorrentado e corroído numa
civilização doente. Essa ideia implicaria que o Eros livre não impede duradouras relações sociais civilizadas [e] que repele, apenas, a
organização supra-repressiva das relações sociais, sob um princípio que é a
negação do princípio de prazer". (Marcuse, 1999: 57)
Penso que isso talvez se pareça com
o que declaram/almejam certos trechos mais "filosóficos" do livro de
Miller:
"Admita ou não, o artista é sempre
obcecado com o pensamento de recriar o mundo, a fim de restaurar a inocência do
homem. Ele sabe além do mais, que o homem só pode recuperar sua inocência
reconquistando sua liberdade. Liberdade, aqui, significa a morte do autômato."
(O mundo do sexo, p. 25)
Não
lembra o Marcuse?
E depois:
"Num de seus ensaios, D. H. Lawrence
salientou que havia duas grandes modalidades de vida, a religiosa e a sexual. A
primeira, declarou, tinha precedência sobre a segunda. O sexo era o caminho
menor, dizia. Sempre pensei que só existe um caminho, o caminho da verdade,
levando não à salvação, mas à iluminação. [...]
Parece fora de esquadro para o autor de Trópico de Câncer emitir tais opiniões?
Não se observarmos debaixo da superfície! Apesar de liberalmente forrada de
sexo aquela obra, a preocupação de seu autor não era com sexo, nem com religião,
mas com o problema da auto-libertação." (O mundo do sexo, p. 24-25)
Sexo-liberdade.
Literatura-liberdade. Vamos voltando ao nosso problema do início. Mas... onde a
"verdadeira realidade das coisas
e dos acontecimentos"?
E aí vem
o que mais me incomodou no livro. Tenho percebido, cada vez com mais força
ultimamente, que a essência do que é dito muitas vezes não está no que é dito, mas na forma como é dito. Vocês
não acham isso? Muito mais que no conteúdo: na estrutura (corro o risco de ser - erroneamente - tachada de
"estruturalista", mas tudo bem).
Então: é
exatamente nisso que este livro de Miller é... estranho. Ele vai bem enquanto
filosofa, acho. Defende bem - poética, lindamente - seus pontos de vista, e para mim é muito fácil
concordar com alguns deles. Mas as duas "vozes" que falam ali - a que
pensa e a que conta - não conversam...
entre si!
Por um
lado, temos um pensador que afirma:
"Podemos
viver com alegria - devemos! - em meio a um mundo povoado de criaturas livres e
sofredoras. Que outro mundo existe em que podemos gozar a vida? Eu sei isso,
que não mais representarei pelo ato de representar, nem agirei só para me
mostrar ativo." (O mundo do sexo,
100-1)
Por
outro, um narrador-personagem que diz (sobre seu período parisiense, se não me
engano):
Através de um inverno interminável eu dormi no
fundo do poço profundo que cavara para mim mesmo. Dormi como um urso. E no meu
sono era o problema do mundo que povoava meus sonhos.
Das janelas dos fundos do apartamento que ocupávamos,
minha amante e eu, eu podia ver o quarto de dormir daquela que eu jurei amar
para sempre. Era casada e tinha uma criança. Na época eu ignorava o fato de que
ela morava nesta casa do outro lado do pátio; nunca sonhei que era dela a
silhueta que enchia meus olhos e me deixava na mais negra infelicidade. Se
apenas eu tivesse sabido, como ficaria grato de me sentar para sempre diante da
janela, sim, até mesmo no esterco e na sujeira. [...]
Arrastando-me para a cama com a outra, eu
passava horas terríveis pensando naquela que estava perdida para mim. Exausto,
enfiava-me de novo no fundo do meu poço. Que forma abominável de suicídio! Não
só eu me destruía e ao amor que me devorava, eu destruía tudo que encontrava
pelo caminho, incluindo aquela que se agarrava desesperadamente a mim no sono.
Eu tinha de aniquilar o mundo que fizera de mim sua vítima." (O mundo do sexo, 50/2)
Esperem aí
um pouquinho: "fundo do poço profundo que cavara para mim mesmo"?
"Problema do mundo"? "Arrastando-me para a cama"?
"Horas terríveis"? "Forma abominável de suicídio"? Uai, mas
onde está aqui "aquele que não mais representa pelo ato de
representar"? Que pode dormir com a mãe, com um animal ou com a própria
filha, satisfazendo seu desejo sem culpa (O
mundo do sexo, 102)? Aquele para quem o sexo não é o sexo, mas a
"auto-libertação"? Se assim fosse, por que sofrer com o sexo pelo
sexo? Por que sofrer por "aquela que estava perdida para mim" e,
sofrendo, também perder-se? Onde a liberdade? Onde a "verdadeira realidade
das coisas e dos acontecimentos"? Faça o que eu digo, não faça o que eu faço?
Por que é que, nesse universo de linguagem que é O mundo do sexo, narrador e pensador, em sendo o mesmo, são tão
outros? Que estrutura mais Dr. Jackyll e Mr. Hide é essa, em que aquele que age não é o mesmo que pensa, sendo os dois a mesma voz?
(Fiquei
meio brava com isso. Além de tudo, tem a coisa de ficar sexualmente excitado
com qualquer mulher chorando atrás da janela: "Uma mulher soluçando no
escuro em geral significa uma mulher implorando por amor" (O mundo do sexo, 108). É possível
isso????????? Juro que podia ter dormido todos estes meses sem essa, mas isso já
é outro assunto...)
Então:
uso (libertário?) do calão, sim. Pensamento que encaminha filosoficamente a
relação entre sexo e liberdade, sim. Mas onde o transformar a literatura em
vida, a vida em literatura? Do ponto de vista ficcional - e, pensando que em
Miller a ficção é tida como autobiográfica -, não vi muito disso não... (Estou
querendo muito de um autor do início do século passado? Claro que sim! Sou
exigente mesmo :-) ) E, aí, como amarrar todas essas pontas?
Vou procurar
fazer isso com uma espécie de confissão pessoal. Corajosa, viu?, e que é a
seguinte: não sou, nunca fui uma pessoa de muitos parceiros (sexualmente
falando, mesmo), e estou muuuuuuuuuuuuito, mas muuuuuuito longe do "paraíso" (??)
chamado por Miller de "A Terra da Foda"... Nunca fui assim. Mas tenho
uma opinião sobre sexo que talvez valha a pena compartilhar aqui e faça com que
a gente consiga vislumbrar a possível relação disso tudo.
Bom, então
aí vai: não todo, e não sempre. Mas sexo, eu acho, é encontro. Como muitas outras coisas na vida: um médico consultando
um paciente. Um professor percebendo um brilho novo no olho de um aluno. Um
abraço entre mãe e filho. Um leitor e um texto. Um homem e uma mulher (dois
homens, duas mulheres, o gênero aqui não importa...).
Só que,
nesse encontro que é o sexo - e isso já não é tão comum de acontecer -, os
participantes, literalmente, se despem
(não sempre, ta bom, há histórias bem bizarras a respeito. Mas na maioria das
vezes. Pode ser?) Então. Sempre tive a impressão de que, quando acontece, esse
despir-se é total - mesmo quando não há muita consciência disso. Não existe
muita dissimulação possível no sexo - embora mitologicamente se diga que sim, e
vários(as) tentem (dizem até que é artimanha feminina)... Na minha experiência,
ali, não é permitido fingir: paixão, entrega, cansaço, desinteresse, afeto,
desamor, narcisismo, culpa, pura atração, descaso, amor imenso. Está tudo ali, e é o que é. Por isso é que
talvez não haja bons amantes e maus amantes. Homens e mulheres sensuais ou não
sensuais. No limite, o belo e o feio. Existe, sim, aquilo que há entre os
parceiros. Existe, sim, a natureza da
relação. E, ali, feia ou bonita, é ela que se desnuda. Inteira. E, de
alguma forma, a própria natureza dos parceiros, já que é ela, uma parte dela,
aquilo que se relaciona; aquilo que,
por inteiro, mas nunca totalmente, é ativado nesse encontro: às vezes o melhor de mim. Às vezes não.
E, quando
é o melhor que ali se ativa, como dizer?, há algo do profundo de uma entrega em
que o que busco não é o eu, mas o outro: aquilo que eu sou, e me alimenta;
aquilo que eu não sou, e me completa. Não o eu - o outro. Não uma "auto-libertação", ou um autoconhecimento,
como em Miller; mas um heteroconhecimento,
uma heterolibertação que, no contraste
e no confronto com o outro, é, sem nenhuma sombra de dúvida, um conhecimento e
uma libertação do mais profundo de mim.
Sem
sombra de dúvida mesmo - porque, nesse processo, não há sombra possível.... Há
um trecho lindo de A Jangada de Pedra, do José Saramago, em
que dois personagens finalmente se unem (sexualmente falando) e, do alto do monte próximo,
sob o luar, um terceiro observa a casa no vale que os abrigava: "Parecia
haver sobre ela uma aura, um fulgor sem brilho, uma espécie de luz não
luminosa" (Saramago, 1997: 185)... Há, nesse encontro, algo que se aproxima da verdade. De alguma verdade, precária
e fugaz. Nada científica, com certeza.
E talvez
seja nisso, Karl, que literatura e sexo se aproximem pra mim, e que ambos se
aproximem da... verdade? Literatura também é encontro... Uma forma muito particular e especial de encontro em
que se partilham experiências muito, muito vivas e, nessa relação - às vezes no
próprio corpo da mentira - algumas
verdades se constroem. Será que é assim? Porque, pensando bem, quem é que disse
que as histórias "verídicas" que contamos todos os dias são, assim...
verídicas? Paradoxal, será? :-)
E,
pensando ainda melhor, talvez não seja à toa que o texto bíblico - o bíblico! -
una, justamente, Verbo, Sexo e Verdade. Afinal, qual foi mesmo a história do
pecado de Adão e Eva? Comeram do fruto da árvore do conhecimento e se
descobriram nus? Ou se descobriram nus e comeram do fruto da árvore do
conhecimento?
"Sereis
como deuses", disse a Serpente. Literatura, verdade, liberdade, criação.
Para mim, não tem mesmo jeito: a verdade - sartrianamente infernal que seja -
está no outro, seja ele livro ou
gente, acho que é isso. É lá que vive aquilo de mim que eu desconheço. E, nesse
encontro - que pode nunca acontecer!,
ou somente uma ou duas vezes na vida, quem sabe, ou muitas vezes - refaz-se
toda a existência de todos os tempos possíveis e fulgura uma verdade. Nesse momento, sim, Karl, sumus
sicut dii: somos como deuses. E depois não mais. E talvez mais uma vez, depois. E fim. :-)
(Peço desculpas por ter demorado tanto tempo em escrever. Nem sei se consegui me fazer assim tão clara... Nem sempre é fácil dizer certas coisas.)
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