ESCRITORES DE CARNE E OSSO

Toda história tem um começo. A deste blog também.

Meu aluno Júlio Bomfim, que esteve no lançamento de Escrito nas estrelas (leia mais sobre o livro abaixo), fez um comentário, dias depois do evento, que achei fundamental. Ele disse: “Sabe, professora (ele sempre me chama de professora, quando me chama pelo nome eu até estranho...): o que a senhora fez, no caso de Escrito nas estrelas, foi algo importante e responsável...”

Fiquei curiosa. Eu em geral sou responsável! (pelo menos me considero assim...). Que teria eu feito de MAIS responsável?...
Ele continuou: “Geralmente, os que escrevem livros para outros, ou transformam em livro as ideias de outros, ficam escondidos, não podem aparecer. A senhora rasgou o véu do ghostwriter: colocou seu nome na capa do livro, deu autógrafos no lançamento – e isso é uma atitude não apenas pioneira, mas também inovadora, porque valoriza o trabalho daqueles que escrevem, que possuem o conhecimento e a técnica necessários para isso, mas quase nunca obtêm reconhecimento público, nem tampouco são valorizados pelo mercado editorial.”

O Júlio tem toda a razão. Não que eu tenha combinado, com o grupo de trabalho de Escrito nas estrelas e com nossa Editora, a Rocco, que meu nome apareceria como o da pessoa que tinha escrito o livro a partir do enorme conhecimento de Horácio Tackanoo por uma questão de vaidade, por querer ser revolucionária ou algo assim. Quem me conhece sabe que, em geral, fico mais escondida do que exposta – às vezes, mais do que deveria.

Mas havia uma espécie de “justiça” que eu considerava necessária nessa minha atitude. Em todos os meus anos de experiência na área de Letras, eu vi (e senti, na pele) todo o desconhecimento que a sociedade tem a respeito de um profissional sem o qual a própria sociedade entraria em colapso – o profissional da palavra. E, consequentemente, toda a desvalorização que esse profissional enfrenta em seu trabalho, as dificuldades em encontrar um lugar ao sol, os baixos salários, etc., etc. Sem uma BOA comunicação (adequada, bem-feita, clara, precisa e, por que não dizer, esteticamente trabalhada), a sociedade se sustenta?

Quando ousei assinar o texto de Escrito nas estrelas (e a palavra é essa mesma, ousei, com nome na capa e tudo mais), quis apenas “dar a César o que é de César”: que o leitor do livro pudesse dizer “que conhecimento maravilhoso, que sabedoria infindável, que riqueza de caminho!”, sabendo que tudo isso é do Horácio, e não meu – não sou astróloga, nem posso assumir como minha a trajetória pessoal instigante e a enorme experiência védica desse homem... Mas que, quando pensasse: “que texto bacana, que livro bem escrito, que linguagem acessível”, esse leitor soubesse que isso, sim, é meu, fruto da minha experiência, do meu trabalho e da minha paixão de vida pelos livros e pela linguagem.

Apesar da “aura” quase mística que cerca os autores de livros, escrever, como diria o grande Graciliano Ramos, “é 10% inspiração e 90% transpiração”... Há muitas pessoas pelo mundo com grandes e inovadoras ideias e com conhecimentos vastíssimos, mas que não saberiam como (bem) transformá-las num objeto organizado, adequado, legível, interessante, vendável e estético como é um livro. E não há nada de errado nisso! Não dá para ser bom em tudo!

Dando forma a esses pensamentos, nós, escritores, estamos contribuindo no sentido de torná-los, enfim, públicos – e da melhor maneira possível: com técnica, com profissionalismo, com paixão.

Isso é que é responsabilidade! (como diria o Júlio...). Responsabilidade de gente. De carne e osso.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

OS DEUSES DO SEXO


"Verdade
Seu nome é mentira"
(Carlinhos Brown)


O mundo de hoje não é nada literário.
Já trabalho em sala de aula há muito, muito tempo (ê, vecchiaia brutta, diria minha avó…), e não é de agora que os alunos torcem o nariz para tudo o que se chama “literatura”. “De que vai me servir ler isso?”, perguntam uns. “Quanto é mesmo que vc ganha, p’sora?”, vêm outros. Há uns dez ou doze anos, numa das maiores escolas de São Paulo, um adolescente de 16 ou 17 se levantou no meio de uma aula minha e saiu gritando e batendo a porta atrás: “Você é louca!!!!! Looooooooucaaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!! Acha que não tenho nada mais pra fazer na vida do que ficar lendo esses livros que você mandaaaaaaaaaaaaaa!!!...” Surtou, fazer o quê? (será que “literatura” é sinônimo de “loucura”, ou é só semelhança fonética?...)
Em outras situações, “literatura” é quase um xingamento, o oposto de pragmatismo, realismo, objetividade, conhecimento: “o que você está propondo é l-i-t-e-r-a-t-u-r-a! Não tem como fazer!!”
Desde Baudelaire é assim. Ou talvez antes. O poeta flanando sem rumo e sem uso pelas ruas de Paris, albatroz pisoteado por botas imundas, cheirando a peixe, sobre o convés de um navio:

Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.

À peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes 
[blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.

Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!

Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.


(Charles Baudelaire, “L’albatros”, in Les Fleurs du Mal, 1861 – não consegui cortar o texto, tão lindo! Segue inteiro.)


O gauche de Drummond, o “errado assim” de Chico Buarque têm essa origem – mas isso já é outra história… “Enfermos que voa(á)vam(os)”, vamos vagando por aí, meio sem rumo, leprosos de uma especie de contágio, os que escrevem, os que leem, mendigos de um tipo de alimento (ou de reconhecimento) que raramente ocorre encontrar, até que…

Há uns oito meses mais ou menos, Karl publicou no Ecce Medicus (www.scienceblogs.com.br/eccemedicus - leitura super recomendada!) um post intitulado “Vibes Linguísticas”. Por favor, me entendam: o Ecce Medicus é um blog… científico (Scienceblogs, remember?...). O Karl é médico, gente! Então, imaginem a minha surpresa ao ler lá algo assim:

“Devo muito do meu gosto por escrever a esse cara (quem sabe um dia aprendo, né?). No dia 26 de Dezembro de 2010 ele faria 119 anos. Henry Valentine Miller foi meu companheiro de plantões em clubes. Fazia ‘exame de piscina’. Se fazia sol, trabalhava muito. Mas, quando chovia, viajava com ele por Paris e Nova Iorque. Por entre ‘pernas e delícias’, eu, menino nerd e sem dinheiro, fui aprendendo que só há um meio de sermos verdadeiramente livres: a literatura.”

“Só há um meio de sermos verdadeiramente livres”? Vocês são capazes de imaginar meus olhos arregalados e meu queixo caído, completamente?

Levei uns dias até conseguir me refazer do susto e “mastigar” todas as palavras do post. Levei meses pensando nesta resposta, amadurecendo os parágrafos, dormindo e acordando com os pensamentos, até que, como sempre acontece comigo, que escrevo muito devagar, gestando frases no silêncio, este texto começou a me incomodar. E, quando incomoda, quando assombra e retorna, então está na hora de escrever, não tem mais jeito.
Nunca li Miller por inteiro. Li Anaïs Nin, há muito, muito tempo, pós-adolescente ainda. E fui ler meu primeiro Miller, O mundo do sexo, no meu período gestacional-pensamental pós-post do Karl, que diz, entre outras coisas:

“Só há um meio de sermos verdadeiramente livres: a literatura.”

“Quando (e se) transformamos nossa vida em literatura então, a coisa fica bem mais interessante.”

“Distorção e deformação são inevitáveis no processo de re-viver a nossa vida. O propósito íntimo de tal desfiguração, obviamente, é captar a verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos.” (Miller, de O Mundo do Sexo, citado no post)

“O paradoxo é que, se por um lado, somos verdade-aditos, sempre em busca do que acreditamos ser a verdade, por outro, criamos mundos fantasiosos para fugirmos dela.”


E, por fim, mas não na ordem do post,


“O mundo de Miller é um mundo onde o sexo tem uma dimensão sacra. Liberdade e criação. A redenção do humano em seu comportamento sexual.”


Literatura. Verdade. Liberdade. Criação.

Eu tinha uns 16 anos (quase no tempo em que os bichos falavam, nossa, to saudosista ultimamente…) quando comecei, no corredor da minha escola, paulista e tradicional, uma conversa com meu professor de literatura. Adorava falar com ele. Eu lia doidamente, apaixonadamente, desde que o mundo era mundo pra mim - influência da minha mãe. Aos 16, conhecia Drummond, todos os Hermann Hesse traduzidos para o português, vários Richard Bach, as Pollyannas, todo o Monteiro Lobato infantil, a mitologia grega, os contos de fadas do Ocidente e do Oriente, Machado de Assis, Alencar, grandes clássicos da literatura mundial (Os três mosqueteiros, Robinson Crusoe, a Ilíada  e a Odisséia, O homem da máscara de ferro, A volta ao mundo em oitenta dias, uma coleção imensa de 50 volumes que ganhei da madrinha), os poetas românticos brasileiros. Tínhamos em casa um livrão de antologia dos românticos (tínhamos, não: ele ainda está lá...). Uma das minhas primeiras lembranças literárias é da minha mãe lendo para mim (teria o quê, 7 anos?), não uma história infantil antes de dormir, que nada! O que ela me lia era assim:

“Sou bravo, sou forte
Sou filho do Norte
Meu canto de morte
Guerreiros, ouvi!”

É, gente, o “I-Juca-Pirama” do Gonçalves Dias mesmo. Com direito a explicações: “o índio foi preso por índios de uma outra tribo, sabe, e tem de fazer como o pai, ser corajoso”…  Será que é por isso, Karl, que eu não choro nos hospitais (“sou bravo, sou forte”, etc....)?
Bom: conversava com meu professor de literatura, eu dizia, uma das pessoas mais importantes e influentes da minha vida. Tinha me caído uma ficha assim (e era o que eu perguntava a ele, naquele dia, com a empáfia meio tímida dos meus 16 anos): “Você não acha que a literatura é a história do interior do homem? Daquilo que ele sente e pensa, daquilo que a História não fala?” (talk about “menino(a?) nerd”…)
Literatura e verdade. Não sei, Karl. Mas acho que já naquela época, tão criança que eu era, já intuía na literatura, nesses “mundos fantasiosos que criamos” para fugir da verdade, algo muito próximo da “verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos”. E até hoje acredito que muitas vezes a ficção faz vislumbrar, muito mais do que o discurso generalizante e uniformizador da ciência, aspectos, fragmentos de uma verdade humana, fugaz, caótica e estarrecedora que há poucos outros meios de alcançar. Isso porque a ficção se debruça sobre o particular, o pequeno, o único, o próprio. E, nesse próprio e nesse único, há, na verticalidade, um universal que é difícil definir em palavras e que talvez tenha a ver com o partilhar da experiência. Paradoxal - acho que sim. Mas a vida é paradoxal, será que não? Então, talvez não criemos mundos fantasiosos para fugir da verdade, mas para nos encontrarmos inteiramente e intermitentemente nela? Não sei. É uma pergunta. E, se conhecer a verdade é uma das maneiras de sermos realmente (mas nunca completamente) livres, então a literatura talvez seja, sim, um dos poucos acessos que temos à liberdade (embora não o único), e você tenha, sim, toda a razão…

Agora, a segunda parte. Miller. O sexo.

Fui ler Henry Miller ávida de sexo (uau!!!...). Mas não de qualquer sexo, não. Queria ler lá “o mundo onde o sexo tem uma dimensão sacra”, “a redenção do humano em seu comportamento sexual” - “a verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos”, afinal. E, talvez seja meu desconhecimento de Miller, talvez o fato de não ter lido a “Crucificação Encarnada”. Mas sabe que eu procurei, procurei, e não vi muito isso em O mundo do sexo?
Tem palavrões, sim, muitos! O texto é “forte”, como você me declarou uma vez - expressão que minha mãe também usaria pra falar de um livro impróprio pra crianças ou de um filme bem sexualizado (:P). Tipo O último tango em Paris, sabe?, que ela foi ver escondidinha quando o filme foi lançado com cortes no Brasil: “fooooorteee…”, com aqueles olhos azuis virados pra cima e as sobrancelhas bem levantadas…
Otto Maria Carpeaux, crítico literário da maior importância que assina a Apresentação de O mundo do sexo na edição da José Olympio, defende ali algumas obras chamadas “pornográficas” de proibições e de cortes, declarando que Henry Miller não foi um “sedutor diabólico, mas um apóstolo da liberdade”, porque “a liberdade […] é mais importante do que a defesa da moralidade de solteironas e de hipócritas” (Carpeaux, apud Miller: 2007, 16). No que concordo inteiramente! Mas será que a liberdade mais radical e verdadeira reside apenas na liberdade de utilizar a língua (no sentido de linguagem, aqui, veja bem… :-) ) como se bem entende, chamando as coisas por seus nomes “proibidos”?
Até certo ponto – e certo tempo – sim, com certeza. Chamar sexo de “foda” e vagina de “buceta” (me desculpem os leitores, estou citando o livro) ainda choca e faz corar quando estamos diante de um texto escrito, literário, publicado, “sério”, e chocava e fazia corar muito mais na época de Miller, estou certa disso. Conquistar o direito de pronunciar esses e todos os nomes, escrevê-los, repeti-los, é exercer uma liberdade de expressão sem amarras que cabe a todos nós. Em alguns contextos, mais ou menos, quer e faz agredir. É também expressar uma revolta contra o bom-mocismo e a hipocrisia. Mas - seria o suficiente?

E então, a segunda camada de liberdade. O sexo livre. Muuuuito sexo, muuuuuuitos parceiros(as), quase o tempo todo. "Império dos sentidos", instinto livre de amarras e de convençōes - ou contra amarras e convenções: princípio do prazer amplo, geral e irrestrito. O mundo do sexo é também isso. Conta lá o narrador/pensador de Miller, nesse livro que é uma mistura (bem resolvida?) de ensaio com narrativa autobiográfica "ficcional" (não, isso não é uma total inadequação de termos) que toma como amante uma mulher que não era aquela a quem jurara "amar para sempre"; que, com a amante, agia "como um maníaco armado com um machado enferrujado e atacando com ele freneticamente a torto e a direito"; que, ao voltar do dia em busca de trabalho,

"Lá estava ela, sua buceta, sempre aberta, sempre à minha espera. Pronta, como uma flor-armadilha, para me engolir inteiro." (O mundo do sexo, p. 52)

E que depois a amante se torna esposa. Para o narrador se tornar amante da mãe da esposa. E das amigas dela. E assim por diante. E sempre mais.
Em 1940, quando o livro foi escrito, em plena IIa Guerra, isso talvez  pudesse ser considerado novo, polêmico, revolucionário até. Pensem nos musicais hollywodianos e puritaníssimos da época. Pensem também naquele beijo tórrido entre Deborah Kerr e Burt Lancaster,



incendiando o preto-e-branco de A um passo da eternidade, de 1953, e enrubescendo as mocinhas. Pensem nos "ohs" e "ahs" escandalizados, nos moralistas de plantão, na caça às bruxas macarthista.Nesse sentido, sim, talvez Miller fosse um "hippie" classudo e afrancesado avant-la-lettre, mistura de Genet e Baudelaire com Pasolini, de Monet com Tennessee Williams, e precursor do Marcuse de Eros e civilização (1a ed. 1955). Nesse livro, praticamente esquecido em nosso tempo de banalização do eros, o filósofo alemão, "guru" da revolução sexual (ele foi apropriado assim), defende que, contra a noção freudiana do inevitável conflito

"entre o princípio de prazer e o princípio de realidade, entre sexualidade e civilização, milita a ideia do poder unificador e gratificador de  Eros, acorrentado e corroído numa civilização doente. Essa ideia implicaria que o Eros livre não impede duradouras relações sociais  civilizadas [e] que repele, apenas, a organização supra-repressiva das relações sociais, sob um princípio que é a negação do princípio de prazer". (Marcuse, 1999: 57)

Penso que isso talvez se pareça com o que declaram/almejam certos trechos mais "filosóficos" do livro de Miller:

"Admita ou não, o artista é sempre obcecado com o pensamento de recriar o mundo, a fim de restaurar a inocência do homem. Ele sabe além do mais, que o homem só pode recuperar sua inocência reconquistando sua liberdade. Liberdade, aqui, significa a morte do autômato." (O mundo do sexo, p. 25)

Não lembra o Marcuse?
E depois:

"Num de seus ensaios, D. H. Lawrence salientou que havia duas grandes modalidades de vida, a religiosa e a sexual. A primeira, declarou, tinha precedência sobre a segunda. O sexo era o caminho menor, dizia. Sempre pensei que só existe um caminho, o caminho da verdade, levando não à salvação, mas à iluminação. [...]
Parece fora de esquadro para o autor de Trópico de Câncer emitir tais opiniões? Não se observarmos debaixo da superfície! Apesar de liberalmente forrada de sexo aquela obra, a preocupação de seu autor não era com sexo, nem com religião, mas com o problema da auto-libertação." (O mundo do sexo, p. 24-25)

Sexo-liberdade. Literatura-liberdade. Vamos voltando ao nosso problema do início. Mas... onde a "verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos"?

E aí vem o que mais me incomodou no livro. Tenho percebido, cada vez com mais força ultimamente, que a essência do que é dito muitas vezes não está no que é dito, mas na forma como é dito. Vocês não acham isso? Muito mais que no conteúdo: na estrutura (corro o risco de ser - erroneamente - tachada de "estruturalista", mas tudo bem).
Então: é exatamente nisso que este livro de Miller é... estranho. Ele vai bem enquanto filosofa, acho. Defende bem - poética, lindamente - seus  pontos de vista, e para mim é muito fácil concordar com alguns deles. Mas as duas "vozes" que falam ali - a que pensa e a que conta -  não conversam... entre si!
Por um lado, temos um pensador que afirma:

"Podemos viver com alegria - devemos! - em meio a um mundo povoado de criaturas livres e sofredoras. Que outro mundo existe em que podemos gozar a vida? Eu sei isso, que não mais representarei pelo ato de representar, nem agirei só para me mostrar ativo." (O mundo do sexo, 100-1)

Por outro, um narrador-personagem que diz (sobre seu período parisiense, se não me engano):

Através de um inverno interminável eu dormi no fundo do poço profundo que cavara para mim mesmo. Dormi como um urso. E no meu sono era o problema do mundo que povoava meus sonhos.
Das janelas dos fundos do apartamento que ocupávamos, minha amante e eu, eu podia ver o quarto de dormir daquela que eu jurei amar para sempre. Era casada e tinha uma criança. Na época eu ignorava o fato de que ela morava nesta casa do outro lado do pátio; nunca sonhei que era dela a silhueta que enchia meus olhos e me deixava na mais negra infelicidade. Se apenas eu tivesse sabido, como ficaria grato de me sentar para sempre diante da janela, sim, até mesmo no esterco e na sujeira. [...]
Arrastando-me para a cama com a outra, eu passava horas terríveis pensando naquela que estava perdida para mim. Exausto, enfiava-me de novo no fundo do meu poço. Que forma abominável de suicídio! Não só eu me destruía e ao amor que me devorava, eu destruía tudo que encontrava pelo caminho, incluindo aquela que se agarrava desesperadamente a mim no sono. Eu tinha de aniquilar o mundo que fizera de mim sua vítima." (O mundo do sexo, 50/2)

Esperem aí um pouquinho: "fundo do poço profundo que cavara para mim mesmo"? "Problema do mundo"? "Arrastando-me para a cama"? "Horas terríveis"? "Forma abominável de suicídio"? Uai, mas onde está aqui "aquele que não mais representa pelo ato de representar"? Que pode dormir com a mãe, com um animal ou com a própria filha, satisfazendo seu desejo sem culpa (O mundo do sexo, 102)? Aquele para quem o sexo não é o sexo, mas a "auto-libertação"? Se assim fosse, por que sofrer com o sexo pelo sexo? Por que sofrer por "aquela que estava perdida para mim" e, sofrendo, também perder-se? Onde a liberdade? Onde a "verdadeira realidade das coisas e dos acontecimentos"? Faça o que eu digo, não faça o que eu faço? Por que é que, nesse universo de linguagem que é O mundo do sexo, narrador e pensador, em sendo o mesmo, são tão outros? Que estrutura mais Dr. Jackyll e Mr. Hide é essa, em que aquele que age não é o mesmo que pensa, sendo os dois a mesma voz?
(Fiquei meio brava com isso. Além de tudo, tem a coisa de ficar sexualmente excitado com qualquer mulher chorando atrás da janela: "Uma mulher soluçando no escuro em geral significa uma mulher implorando por amor" (O mundo do sexo, 108). É possível isso????????? Juro que podia ter dormido todos estes meses sem essa, mas isso já é outro assunto...)
Então: uso (libertário?) do calão, sim. Pensamento que encaminha filosoficamente a relação entre sexo e liberdade, sim. Mas onde o transformar a literatura em vida, a vida em literatura? Do ponto de vista ficcional - e, pensando que em Miller a ficção é tida como autobiográfica -, não vi muito disso não... (Estou querendo muito de um autor do início do século passado? Claro que sim! Sou exigente mesmo :-) ) E, aí, como amarrar todas essas pontas?

Vou procurar fazer isso com uma espécie de confissão pessoal. Corajosa, viu?, e que é a seguinte: não sou, nunca fui uma pessoa de muitos parceiros (sexualmente falando, mesmo), e estou muuuuuuuuuuuuito, mas muuuuuuito longe do "paraíso" (??) chamado por Miller de "A Terra da Foda"... Nunca fui assim. Mas tenho uma opinião sobre sexo que talvez valha a pena compartilhar aqui e faça com que a gente consiga vislumbrar a possível relação disso tudo.
Bom, então aí vai: não todo, e não sempre. Mas sexo, eu acho, é encontro. Como muitas outras coisas na vida: um médico consultando um paciente. Um professor percebendo um brilho novo no olho de um aluno. Um abraço entre mãe e filho. Um leitor e um texto. Um homem e uma mulher (dois homens, duas mulheres, o gênero aqui não importa...).
Só que, nesse encontro que é o sexo - e isso já não é tão comum de acontecer -, os participantes, literalmente, se despem (não sempre, ta bom, há histórias bem bizarras a respeito. Mas na maioria das vezes. Pode ser?) Então. Sempre tive a impressão de que, quando acontece, esse despir-se é total - mesmo quando não há muita consciência disso. Não existe muita dissimulação possível no sexo - embora mitologicamente se diga que sim, e vários(as) tentem (dizem até que é artimanha feminina)... Na minha experiência, ali, não é permitido fingir: paixão, entrega, cansaço, desinteresse, afeto, desamor, narcisismo, culpa, pura atração, descaso, amor imenso. Está tudo ali, e é o que é. Por isso é que talvez não haja bons amantes e maus amantes. Homens e mulheres sensuais ou não sensuais. No limite, o belo e o feio. Existe, sim, aquilo que há entre os parceiros. Existe, sim, a natureza da relação. E, ali, feia ou bonita, é ela que se desnuda. Inteira. E, de alguma forma, a própria natureza dos parceiros, já que é ela, uma parte dela, aquilo que se relaciona; aquilo que, por inteiro, mas nunca totalmente, é ativado nesse encontro: às vezes o melhor de mim. Às vezes não.
E, quando é o melhor que ali se ativa, como dizer?, há algo do profundo de uma entrega em que o que busco não é o eu, mas o outro: aquilo que eu sou, e me alimenta; aquilo que eu não sou, e me completa. Não o eu - o outro. Não uma "auto-libertação", ou um autoconhecimento, como em Miller; mas um heteroconhecimento, uma heterolibertação que, no contraste e no confronto com o outro, é, sem nenhuma sombra de dúvida, um conhecimento e uma libertação do mais profundo de mim.
Sem sombra de dúvida mesmo - porque, nesse processo, não há sombra possível.... Há um trecho lindo de A Jangada de Pedra, do José Saramago, em que dois personagens finalmente se unem (sexualmente falando) e, do alto do monte próximo, sob o luar, um terceiro observa a casa no vale que os abrigava: "Parecia haver sobre ela uma aura, um fulgor sem brilho, uma espécie de luz não luminosa" (Saramago, 1997: 185)... Há, nesse encontro, algo que se aproxima da verdade. De alguma verdade, precária e fugaz. Nada científica, com certeza.
E talvez seja nisso, Karl, que literatura e sexo se aproximem pra mim, e que ambos se aproximem da... verdade? Literatura também é encontro... Uma forma muito particular e especial de encontro em que se partilham experiências muito, muito vivas e, nessa relação - às vezes no próprio corpo da mentira - algumas verdades se constroem. Será que é assim? Porque, pensando bem, quem é que disse que as histórias "verídicas" que contamos todos os dias são, assim... verídicas? Paradoxal, será? :-)
E, pensando ainda melhor, talvez não seja à toa que o texto bíblico - o bíblico! - una, justamente, Verbo, Sexo e Verdade. Afinal, qual foi mesmo a história do pecado de Adão e Eva? Comeram do fruto da árvore do conhecimento e se descobriram nus? Ou se descobriram nus e comeram do fruto da árvore do conhecimento?
"Sereis como deuses", disse a Serpente. Literatura, verdade, liberdade, criação. Para mim, não tem mesmo jeito: a verdade - sartrianamente infernal que seja - está no outro, seja ele livro ou gente, acho que é isso. É lá que vive aquilo de mim que eu desconheço. E, nesse encontro - que pode nunca acontecer!, ou somente uma ou duas vezes na vida, quem sabe, ou muitas vezes - refaz-se toda a existência de todos os tempos possíveis e fulgura uma verdade. Nesse momento, sim, Karl, sumus sicut dii: somos como deuses. E depois não mais. E talvez mais uma vez, depois. E fim. :-)


(Peço desculpas por ter demorado tanto tempo em escrever. Nem sei se consegui me fazer assim tão clara... Nem sempre é fácil dizer certas coisas.)

2 comentários:

  1. O pathos patológico do sexo...

    "O jeito de falar das pessoas, seu jeito de andar, seu jeito de vestir, seu jeito de comer e onde comem, seu jeito de olhar umas para as outras, cada detalhe, cada gesto que fazem revela a presença ou ausência de sexo.”

    É uma leitura do mundo. Um recorte do olhar. Mas muito longe de ser só isso. "E existem ainda os assassinos do sexo - a gente os reconhece instantanemente em qualquer lugar." O que seria um assassino do sexo? A explicação é didática, crua e seca. Milleriana.

    "De vez em quando, em minhas caminhadas, coincide que vou passando no momento exato em que um manequim será ajeitado. Lá está a grande boneca, nua como cera, exposta à visão geral. O vitrinista acabou de colocar os braços ao redor dela a fim de a mover para lá e para cá. Impressionante a aparência viva de um manequim! Não só vivo, mas levemente lascivo. Quanto ao vitrinista, tudo nele sugere o agente funerário."

    Um assassino do sexo diria: "Tesão por manequins??!! Isso é uma perversão!". Não é. É a fraldinha amarrada na chupeta. Um bebê chupa um simulacro de peito e acaricia um simulacro de pele materna e fica em paz. É a cenoura que mantem o burro andando. Deve ser entendida como prova cabal de nossa animalidade. Quantas "perversões" temos e por que as buscamos? Um bebê, mais evidentemente, e nós, no decorrer da existência, somos animais em busca de paz. Muitas de nossas "perversões" animais são (e devem ser) sufocadas ao bem da civilização, mas isso não impede de que nos sintamos mal muitas vezes. O Mal estar da Civilização de Nietzsche e Freud.

    Um animal nasce, come, vive, reproduz-se e morre. Pronto. Eis aí um sumário para uma tese sobre qualquer bicho. Miller discorreu sobre o penúltimo item. Sobre o que a besta humana construiu a respeito de sua reprodução, ele mesmo laboratório de suas experiências. O pathos patológico do sexo.

    É também uma linguagem e, por essa razão, traz consigo todas as intrincadas relações com a verdade. Com a coisa-em-si humana. Sendo língua, há que dominá-la para gozar do prazer da comunicação. Veja só! E aí então, estaremos na paz voluptuosa, sensual e libertadora do animal humano de Miller. Paz fugaz por definição, pelo menos até a próxima foda cósmica.

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  2. :))))))))))))))))))

    Dois maluquinhos: uma escreve "Os deuses do sexo" e o outro responde com a "foda cósmica"... :D

    Concordo. Somos todos uns bichos! E temos mais que soltar as feras, mesmo, abaixo os caçadores de plantão! :) Mas, fiquei pensando, somos uns bichos um pouquinho diferentes porque... sonhamos! Encostamos num parapeito de UTI, para além da "porta branca", entre choro e ranger de dentes, e sonhamos!...
    E, nesse sonhar, há o risco de um desejo e a prospecção de um futuro. Então, nos libertamos do tempo e construímos... uma história :)

    (Continuo achando que o Miller fala muito - bem - e faz pouco - e não tão bem (vou ter de dar uma conversadinha com a June e com a Anais Nin, rsrs...). Pelo menos o Miller de O mundo do sexo, os outros vc conhece mais que eu. E nós também! Hoje é domingo e eu to aqui falando sem parar... Né? ;P )

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