Conhecem a citação abaixo, do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago? Conhecem o Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago?
(Depois da cegueira, do encarceramento, dos estupros, dos assassínios...)
"Só Deus nos vê, disse a mulher do primeiro cego, que, apesar dos desenganos e das contrariedades, mantém firme a crença de que Deus não é cego, ao que a mulher do médico respondeu, Nem mesmo ele, o céu está tapado, só eu posso ver-vos, Estou feia, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Estás magra e suja, feia nunca o serás, E eu, perguntou a mulher do primeiro cego, Suja e magra como ela, não tão bonita, mas mais do que eu, Tu és bonita, disse a rapariga dos óculos escuros, Como podes sabê-lo, se nunca me viste, Sonhei duas vezes contigo, Quando, A segunda foi esta noite, Estavas a sonhar com a casa porque te sentias segura e tranquila, é natural, depois de tudo por que passámos, no teu sonho eu era a casa, e como, para ver-me, precisavas de pôr-me uma cara, inventaste-a, Eu também te vejo bonita, e nunca sonhei contigo, disse a mulher do primeiro cego, O que só vem demonstrar que a cegueira é a providência dos feios, Tu não és feia, Não, de facto não o sou, mas a idade, Quantos anos tens, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Vou-me chegando aos cinquenta, Como a minha mãe, E ela, Ela, quê, Continua a ser bonita, Já foi mais, É o que acontece a todos nós, sempre fomos mais alguma vez, Tu nunca foste tanto, disse a mulher do primeiro cego. As palavras são assim, disfarçam muito, vão-se juntando umas com as outras, parece que não sabem aonde querem ir, e de repente, por causa de duas ou três, ou quatro que de repente saem, simples em si mesmas, um pronome pessoal, um advérbio, um verbo, um adjectivo, e aí temos a comoção a subir irresistível à superfície da pele e dos olhos, a estalar a compostura dos sentimentos, às vezes são os nervos que não podem aguentar mais, suportaram muito, suportaram tudo, era como se levassem uma armadura, diz-se A mulher do médico tem nervos de aço, e afinal a mulher do médico está desfeita em lágrimas por obra de um pronome pessoal, de um advérbio, de um verbo, de um adjectivo, meras categorias gramaticais, meros designativos, como o são igualmente as duas mulheres mais, as outras, pronomes indefinidos, também eles chorosos, que se abraçam à da oração completa, três graças nuas sob a chuva que cai."
(p. 266-267 da 1a ed.)
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